Adeus Gabriel Garcia Marquez, já ninguém te escreverá.
Antonio Orihuela
Uma breve nota introdutória põe-nos ao corrente das motivações
para o poema: «surge de uma repentina doença que pode a qualquer momento acabar
com a vida do poeta. No hospital, os médicos informam-no que viver ou morrer
será decidido numa longa noite. Nessa noite é escrito Que o Fogo Recorde os
Nossos Nomes, uma elegia onde o autor percorre a sua vida saudando
com um adeus os seus entes queridos» (p. 5). Contextualização desnecessária para
a leitura, aceita-se tendo em conta que o longo poema traduzido e publicado por
manuel a. domingos na sua Medula se insere no conjunto de uma obra caudalosa
que Antonio Orihuela (n. 1965) vem produzindo desde meados da década de 1990. À
margem de discursos reinantes e oratórias comuns, essa obra surge de uma
propensão inata para o intervencionismo libertário, em diálogo com toda uma
tradição que é, paradoxalmente, a de um confronto ininterrupto com a própria
tradição. Ou seja, esta poesia alimenta-se de um estado de crise sem
descontinuidade, o seu paradigma é o de uma relação crítica com o mundo
alicerçada na liberdade de pensamento e, por consequência, na liberdade de
expressão desse mesmo pensamento. Não obstante, encontramos neste poema uma
contaminação emocional que advém da ameaça imposta pela doença. Sabendo-se para
a morte, o poeta constrói um poema onde a despedida de lugares, influências, no
sentido de referências, coordenadas políticas, sentimentais, literárias, artísticas,
tecem um mapa emocional que é, feitas as contas, a substância caótica do próprio
sujeito poético. Mais do que confissão impõe-se o conceito de catarse,
utilizado há muito por Aristóteles para definir o objecto da tragédia. Dizia o
estagirita que esta purificava, oferecendo-lhe um significado de tratamento
que, não salvando da morte o espírito ameaçado, pelo menos alivia a dor cuja
origem pode encontrar feridas diversas. Em Orihuela, a catarse reproduz uma narrativa
evocatória do espírito beatnik, atirando para o ar, sem lógica aparente, inúmeras
referências das quais o poeta se despede com uma raiva que permite antever na
sombra dos versos tanto uma certa nostalgia como a desesperança provocada por
um presente falhado: «Adeus Diggers que destes de comer ao faminto / pelo
simples facto de ser assim que se deve fazer. / Adeus Yippies que quisestes
abolir o dinheiro / e a polícia. / Adeus hippies, paz, amor e moca, / o vento
levou-os, mas para onde, para onde? / (…) Adeus USA, esfomeado esgoto do mundo»
(pp. 14-15). Apesar da truncagem, repare-se no fio que conduz as “boas acções”
dos movimentos de contra-cultura norte-americanos, algures perdidas no tempo,
levadas pelo vento sabe-se lá para onde, a uma definição sinistra do palco onde
tiveram lugar. Por outro lado, sem querer parecer rebuscado, note-se igualmente
como esse “esgoto” pode também aqui ser entendido como a doença que ameaça um
outro doente, o “mundo”. Orihuela despede-se de si próprio ao despedir-se de tudo
quanto o tocou, mas coloca-se, talvez involuntariamente, no papel de um microrganismo
que representa o definhamento do mundo: «Adeus necessidade, propriedade,
escravidão, moral, / poder, estatuto, ambição, autoridade, / conceitos e
deveres absurdos que nunca foram novos. / Adeus ética, liberdade, potência, /
adeus a ver tudo ao contrário, / adeus a colher pela raiz aquilo que ninguém
ousa ver, / fio vermelho, razões, safanões» (p. 26). Em suma: «Adeus burguesia,
lixo, / nunca mais me dirás como viver a minha vida» (p. 30). Ora, ainda que,
como pretende o poeta, possamos entender ser este «um poema épico e elegíaco»,
não podemos deixar de sublinhar a sua vertente política, nessas coordenadas
mais nobres da intervenção que são as de uma expurgação sem constrangimentos partidários
nem segundas intenções evangelizadoras. Que o Fogo Recorde os Nossos Nomes (Abril de 2013) é um
excelente poema que merece ser lido atentamente. Dele se fizeram 100 singelos
exemplares, sendo certo que, passado um ano sobre a publicação, muitos ainda se
encontram disponíveis. Isto, por si mesmo, já diz muito do tempo que actualmente
atravessamos.
2 comentários:
Onde posso adquirir o texto?
https://www.facebook.com/medulalivros
Enviar um comentário