eu sou absolutamente moderna, Rimbaud.
sei que nunca pensaste que uma rapariga de Portugal
se tornasse absolutamente moderna.
o caso é que nunca deitei o amor pela janela
mas a janela deitou-se pelo amor dentro.
não toco piano, não falo francês, nem faço fru-fru.
sou absolutamente moderna, Rimbaud.
tenho telemóvel, tenho blog, tenho carro
e até uma paixão que já não é platónica
agora para se ser absolutamente moderno
diz-se virtual, Rimbaud.
perdoa-me
dou-te a minha perna
um prato com bolinhos de canela
para te lembrares do tempo dela.
perdoa-me o sarcasmo, Rimbaud
o fatalismo azedo de rapariga absolutamente moderna
constructo humano, já não ser.
perdoa as minhas pernas a engordar de noite para noite
o fumo da chaminé comum do prédio
a minha imensa falta de árvores
a minha necessidade que devora um poema para o deitar fora.
perdoa-me não ter entendido uma única coisa que disseste
mesmo na tradução do Cesariny que é livre e bela
como uma rosa francesa desgrenhada em solo português.
perdoa-me escrever telegraficamente
ter deixado de respirar para todo o sempre
e continuar a pintar os lábios de vermelho
como se isso fosse possível num deserto sem beijos.
perdoa-me não ter conseguido manter a tua palavra
perdoa-me ter falhado e ser erro.
p.s. - se quiseres regressar a terra
como o Cristo da literatura do não
tomas café comigo?
Ana Salomé (n. 1982), in Odes. Um primeiro volume de poemas maioritariamente em prosa – Anáfora
(2006) – anunciou a voz de Ana Salomé, que cuidadosamente definiu o conjunto
como “narrativas poéticas”. Este pendor narrativo pressagia, porém, alguns dos
sinais desenvolvidos nos versos de Odes (2008). Imagens cuidadosamente resgatas de um ideário lírico amoroso transparecem uma delicadeza no tratamento
da linguagem que não pode ser confundida com o sentimentalismo e a candura de
muita poesia congénere. Na realidade, o pathos que anima esta poesia tem origem em situações diversas: sobressaem a condição feminina do sujeito
poético, a reclamação de uma maturidade porventura irreconhecível, um desfasamento geracional, a unidade na dispersão,
ao mesmo tempo que se ensaiam envios de destinatário mais ou menos objectivo. O
amor enunciado é tão passional quão enfeitiçado pelos prazeres da vida, invocados
em breves gestos, cintilações, alguns objectos de valor sentimental, não se permitindo
falsos êxtases que a ironia e a prática comedida da metáfora precavidamente impedem. É uma poesia emotiva, na medida em que se constrói a partir
de muitas formas de sentir mais do que de uma única forma de pensar.
Sem comentários:
Enviar um comentário