quarta-feira, 21 de maio de 2014

OUVIMOS O REAL


Já chegou o homem novo, aquele
por Whit-
man anunciado, embora
sujeito a insuspeitos
refrões financeiros. Basta
que um fale
conhecemo-los todos, todos
igualmente superficiais,
trazem na lapela o sinal
emblemático da sua pobreza
de espírito. Outros trazem mais
a regra da indiferença
e nós, as mulheres, cobrimo-nos
com as pinturas da guerra
declarada ao sucesso
do homem novo. Moderno
como um fogo cáustico, tudo
devora, a Natureza
e as próprias raízes, tudo
sobrevoa cego de apenas ver
em diferido.


Nós ouvimos o real uivar
prisioneiro da sombra, o mapa distor-
cido, a cartografia desta doença
planetária que murcha e desagrega
o cérebro à lareira, no bramido
à vida pondo fim. Desapareceu
dos lábios a doce palavra
«companheiro», somente
a beiça voraz escancara dentes
dourados, rupestres, as presas
do bom hálito do homem novo.
Tanto faz ficares connosco, porque
partir é onde ilusionistas
e agências nos transportam, só
a cortês nesga do rio nos leva:
ásperas, pedra-pomes. Desgraça,
demais confiámos o corpo à margem
calma, aos risonhos bebedouros, - insinuavam:
pejados de alma, mas alma, alma
é coisa para antigos
livros poéticos.


A verdura ainda cresce, é no peito
que floresce o íntimo
herbário das mulheres, a opala
pensante, pensativa cria e crença
terra no feminino. Inócua ordem
a baniu face à constelação
pagã das nossas certezas. 
Repare-se no veneno
escorrendo pelos cantos
da boca do homem, a poção
mágica que dele nos livre,
mudo fervem-lhe os olhos, o
gadanho suplicante da mão à procura
como se merecesse lenitivo:
hora indigesta no silencioso pasto.
Para nós, a refeição frugal
faz-se à beira
Tejo, simples miradas mergulham
acima dos joelhos verdes
e então águas soltam de nós
a sede de bocas moribundas.


Fuma-se contra o peso nado desse
silêncio, contra
as ressonâncias, essas,
o estalar do soalho sob pés nus
(«nos campos, eles não precisam
das minhas lágrimas», diz uma)
crispa a cigarrilha no ressalto
de imagens televisivas, dói-nos
quanto vemos, são estilhaços
virtuais, representações ósseas
da inclassificável travessia das criadas
pelo homem novo a devastar
(«e nas cidades, quem precisa?»)
o sonho moderno. Que desperdício
nos sucede! Um desespero sem nome
e como queima
lixívia a brotar das sílabas e do adeus
que se instala no dédalo, em desarmonia
depois passa, submissa, uma,
as demais resignadas
à luz do dia.


Gazela, na penumbra,
ouve a respiração do solo, escuta
a exigência de rictos límpidos,
sazonais:
          Os que passam cortam
       e nenhum pára
       nesta estação de dicionários
       passam por palavras úteis
       mas não, poucos eram
       os indícios de caça, o Verão
       subitamente passado.
         Na sombra das folhas
       rubras do Outono
       a pintura, o coado
       princípio de luz
       soa a pássaros e a segredos
       cadentes de juras
       e corações gravados.
Olhar para fora de campo, para o lado
do pólen, para a ausência,
e contudo («volta...») tudo prosseguir:


        Frio e chuva, mais real
     que vento, o vento é
     um embalo na gaiola do labor
     no Inverno, livro ardente
     a horas interditas, quase
     já foi, intacta, uma
     vida.
E o adiamento da putrefacção? narrativa
de aromas ritualizando-se em sons,
aí está, oráculo de sémen e sementes
para a controvérsia dos dias de alimentos
sumários... estação de lamber
o mel e a cal dos muros. Cerúlea
pole o cristal, insígnia de gazela:
não, ninguém, a nenhum homem novo
te atreveste dar o verdadeiro nome,
ou o mais consentâneo... Pôncio!...
Salomão!... Josué!... Ivan!... - 
Queres lá saber por que
nomes o chamam ou responde,
nove meses já chegou.


Paulo da Costa Domingos (n. 1953), in Carmina 1971-1994. «A acusação é, para mim, juntamente com o sofrimento - elementos quase sempre a par - dos valores mais esperados de encontrar nos versos, porque dos que mais fomenta a impossibilidade de a poesia ser passível de ser assumida como um outro dos enfeites sociais dos triunfadores (obviamente que me coloco na posição do meu modo de julgar um gosto e saiba que de um modo diferente deste também a poesia possa resultar como ume feito de surpresa e até de sedução para alguns. Para mim, porém, há esta hierarquia, por mais certa ou errada que possa estar, a qual é um nunca admitir pôr-se ao serviço de uma qualquer legitimação de um qualquer assenhoramento). (...) Que se passa neste momento entre nós, que decapitação? Para que pessoas sem compromisso a não ser com o esmagamento dos outros (Rui Nunes, Armando da Silva Carvalho, Silvina Rodrigues Lopes, Paulo da Costa Domingos, e não refiro nenhum mais para não me acusarem de falar daqueles, e são vários, que são os meus amigos mais imediatos) actuem em nome de uma acusação visceral que ninguém pode apodar de compromisso partidário, ultrapassem a alegria vegetativa dos escritores que dão vivas a si mesmos e se dependuram da possibilidade de serem excelentes "herdeiros"? Daqui irradia o território do poema, a sua gramática de esmeril. O poema transforma-se numa descrição ética. Parte de uma zona expositiva inicial, aprofunda-a, espreme-a, deixa todo o pus a supurar na reiteração. Não há margem de escape, não há consolação, não há transcendência: é o puro afundamento do humano por um pouco do humano que nos é enunciado em bruscos alinhamentos. Aí a lírica ganha o poder (sem poder) de equacionar a abjecção do tempo e da história, da humanidade e do que, contemporâneos dela por uma breve vida, podemos testemunhar» (Joaquim Manuel Magalhães, in Expresso, 10 de Setembro de 2005, a propósito de uma nova versão de Asfalto).

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