terça-feira, 27 de maio de 2014

PORTUGAL, A FLOR E A FOICE


Escrito entre Abril de 1974 e Outubro de 1975, Portugal, a Flor e a Foice (Quetzal, Março de 2014) foi finalmente editado em Portugal. J. Rentes de Carvalho (n. 1930), fixado em Amesterdão desde 1956, diz que escreveu o livro para o público holandês. A verdade é que passados quase 40 anos sobre a edição holandesa, muito faria bem ao público português ler esta “colectânea de factos e acontecimentos”. A pergunta que se impõe é: como ler um livro destes? Não sendo história, está longe de ser ficção; a evidente preocupação com a verdade não suprime o olhar subjectivo do autor; enquanto análise de uma actualidade distante, parece por vezes profético; retrato do que somos (fomos?), aproxima-se da crónica de Fernão Lopes com o olhar desencantado que a distância permite. Talvez a forma mais justa de leitura seja também essa, a de uma distância que a passagem do tempo, todavia, não amadureceu. Porque o retrato é amiúde impiedoso, crítico quanto baste, fascinado por vezes, mas, sobretudo, perspicaz na análise do seu tempo, convirá manter uma certa precaução não vá fazer dói-dói a leitura. 
Elucubrações sobre a natureza lusitana, meditações sobre desígnios nacionais, reflexões sobre matrizes e destinos não nos faltam, sendo outra aqui a história. O esforço de análise política da situação então vigente proporciona ao leitor um testemunho quase jornalístico, pese embora a afectação crítica, repleta de dúvidas e de desconfianças inegáveis, testemunho tanto mais válido quanto o seu autor optou por ser fiel a si mesmo opondo-se a concessões de circunstância que porventura lhe teriam sido mais vantajosas. Isso explica o silêncio tombado sobre a obra durante tanto tempo. O resumo da história de Portugal que abre o livro, sentenciando os mitos propagados pelo Estado Novo (uma raça que nunca existiu, putativos heróis que eram facínoras, gloriosas épocas reduzidas a tempos de pirataria, uma monarquia basbaque e displicente, o caos republicano, etc.), estaria em linha com o período revolucionário não tivesse sido este, mais uma vez, favorável à imagem de “república bananeira” que tão bem nos promove lá fora. Impossível discordar da corrupção endémica, da subserviência internacional, da mesquinhez das elites, do conservadorismo católico, da insularidade de carácter que imprime nos portugueses uma obsessão de partir, uma necessidade de fugir que faz de nós povo de emigrantes com capital «cabeçorra desproporcionada, [que] desde há séculos anemia o país, sugando-lhe as energias, chamando tudo a si» (p. 43). 
Se é verdade que alguma coisa mudou desde 1975, nomeadamente o nível de vida da população em geral, também não deixa de ser verdade que, apesar das transformações, nos mantivemos grosso modo uma população sem nível, para não falar dos retrocessos em marcha que começam a colocar o país, nalguns aspectos, à altura do que era aquando da revolução. Não obstante, mesmo para a época, J. Rentes de Carvalho mantém para com o povo (ininteligível, indefinível, simplesmente nomeável) - então desprotegido pelo analfabetismo generalizado, pelo medo ainda esvoaçante, pela influência castradora do catolicismo - uma complacência que o isenta de responsabilidade. Facilmente manipulável, obedece cega e religiosamente. Mas que pensar hoje desse mesmo povo, acomodado na indiferença e letargicamente desinteressado? Seja qual for a resposta, tristemente se constata serem ainda tão actuais estas palavras de 1975: «De um ponto de vista social, a emigração portuguesa constitui a manifestação de uma forma de escravidão que subsiste ainda hoje. De um ponto de vista ético, a emigração portuguesa significa a negação constante do direito mais elementar da pessoa: o direito à vida no próprio país. De um ponto de vista político, a emigração portuguesa supõe a renúncia à revolta» (p. 57). 
Os ódios de estimação de J. Rentes de Carvalho são outros, como não podia deixar de ser face à sua própria condição: a Igreja oportunista e manipuladora, as elites cobardes e demagógicas, personalidades políticas como Spínola e Soares, muito pela incoerência e também pelo oligarquismo burguês que representam, intelectuais de pacotilha. As páginas sobre a oposição ao regime e a luta clandestina são especialmente relevantes e reveladoras, tão trágicas como cómico é o capítulo dedicado à corrida ao volfrâmio durante a Segunda Grande Guerra (apenas comparável à corrida ao ouro no antigo Oeste): «Em vários sentidos a literatura portuguesa é decepcionante: na temática, no estilo, nas reacções de muitos dos seus escritores perante a realidade do país. A nenhum dos que viveram ou morreram durante a ditadura, e a nenhum dos vivos se pode aplicar a frase de Soljenítsin: «Um grande escritor é um segundo governo». / Os escritores portugueses contemporâneos todos juntos serão, quando muito, uma junta de freguesia» (p. 137). Talvez exista aqui um certo excesso de zelo, tendo em conta as próprias limitações que então se impunham. Não falo da censura, que essa existia para censurar. Falo da inexistência de um público que lesse, que era escasso e, por isso, retirava à própria literatura muito do seu potencial agitador. 
Já sobre oposição ao regime a conclusão é sintomática: «é dramático constatar que, enquanto noutros países, condições de opressão idênticas tiveram como consequência um fortalecimento da oposição, em Portugal, os oponentes ao regime caíram, regra geral, numa verborreia ineficaz, num republicanismo bolorento, em sentimentalismos democráticos» (p. 73). Em suma, os comunistas «foram os únicos adversários activos, consequentes e permanentes de Salazar» (p. 75). Não faltam dados, historietas, anedotas, aspectos picarescos e hilariantes para apimentar a prosa, embora o tom predominante seja sério e, em certa medida, deprimente. Em decomposição desde 1961, com a implosão das guerras ultramarinas, o regime fascista foi perdurando sobre a inoperância da oposição democrática e o patrocínio dos “príncipes” da nação: Melos, Champalimaud, Espírito Santo, entre outros apelidos ainda hoje assaz familiares a qualquer português. A passividade geral não foi fortemente abalada pelo Movimento de Capitães que, saturados da guerra, fez a revolução de um dia para o outro (ou nem tanto) sem mossa de maior. 
Os últimos oito capítulos ocupam-se dos heróis que então emergiram, incapazes de apagar velhos fantasmas, insistindo no terror comunista, cedendo aqui e acolá no oportunismo de circunstância, apertando a mão a antigos traidores, protegendo inimigos, cultivando amizades profícuas, títeres de interesses maiores e multinacionais. «Para o povo analfabeto, submisso à Igreja, a aparição dos que sempre foram apontados como parceiros de Belzebu causa um princípio de terror» (p. 166). O Belzebu era o comunismo, que se aprontava para confiscar panelas de pressão (sic). A dimensão hilariante da vida política portuguesa à época fica bem explícita nesta caricatura: «Nalgumas aldeias os comunistas são recebidos a tiro. Em Macedo de Cavaleiros os ricos da terra cotizam-se para pagar a mais de mil pessoas um dia de salário para que assaltem a permanência que o PCP lá mantém. Não ficou um pé de cadeira por quebrar. / Há comícios do CDS que os comunistas fazem dispersar às pauladas. Os socialistas batem nos do PPD, e estes nos socialistas. Depois, fraternizando, ambos os grupos atacam os maoistas. E os maoistas, juntamente com os marxistas-leninistas e os trotskistas, batem nos monárquicos. Os monárquicos, por sua vez, juntos aos democratas-cristãos, surram os socialistas, e os comunistas, e os sociais-democratas e os maoistas» (p. 177). Pluralidade democrática em versão caceteira, com um povo miserável em pano de fundo.
Ficaram a rir os que sempre riem destas coisas, os tais Melos e Espírito Santo que, mais viagem menos viagem, haveriam de continuar o seu progresso pessoal à sombra da chamada frágil democracia portuguesa. Vai longa a prosa porque estimulante é o livro. Muito teríamos a dizer sobre os erros do PCP (demasiados, segundo o autor), a ascensão da marca Soares, a obesidade do MFA, a influência externa, etc. Chegámos aqui. Apreensivos? Acomodados? Quiçá ingratos. Apesar de tudo, como escuto amiúde à vizinhança, temos paz. A paz podre dos pequenos assaltos e das grandes vigarices. Mas paz.

2 comentários:

Texticulos disse...

O capítulo sobre o Volfrâmio é um delicioso discorrer sobre a portugalidade.

hmbf disse...

Sem dúvida. Mas não é só portugalidade. Quem veja filmes de cowboys sabe disso :-)