Portugal é um país estranho e o destino prega-nos
partidas. Na mesma semana em que Ípsilon e Atual sublinham A Morte Sem Mestre,
recebo pelo correio (encomendas aqui) este folheto introdutivo de obra mais
extensa, já anunciada, sobre o saudoso editor Fernando Ribeiro de Mello (explorar
weblog Afrodite). O que tem uma coisa que ver com a outra? Tudo. E nem me
refiro ao facto de entre Herberto e Ribeiro de Mello terem existido aproximações
sobejamente conhecidas. O poeta atingiu o estatuto do altíssimo, afastando-se
do social como os anacoretas do deserto. Que não dê entrevistas, que se não
deixe filmar, que recuse prémios, que não queira ser uma estátua no jardim dos
poetas não impediu que se transformasse, como bem diz António Guerreiro na
crónica de hoje, num «produto de especulação financeira». Ele ou a obra, para o
caso vai dar ao mesmo. É verdade que Guerreiro, antes de disparar contra a “sofisticada”
comercialização da obra, lá abre os cordões à bolsa com cinco estrelas. Acrescenta: «este livro é incomensurável, no modo como se expõe. No mais alto
grau, não lhe servem nenhumas estrelas, mesmo que o critério seja o da
comparação com livros anteriores do autor». Pedro Mexia foi mais modesto,
resumiu a prosa nas quatro estrelas da praxe. É o pior te todos os livros de
Herberto Helder, apenas salvo da mediocridade por ser um livro de Herberto
Helder. Ninguém lhe ligaria nenhuma se não fosse de quem é. Sucede que quem é
tem muita força, daí que o discurso mais crítico aponte as baterias para os
critérios subjacentes à edição. A cereja no topo do bolo é o livro sair com a
chancela do mais poderoso grupo editorial português, o mesmo cujo responsável
máximo ainda há quatro anos, em entrevista concedida ao Público, vaticinava o
seguinte: «Se me perguntar se daqui a dez anos ainda se edita poesia em
Portugal, eu dir-lhe-ei que não. Quando muito teremos algumas edições
artesanais. Mas continuaremos a ter poesia via e-books ou através do “print on
demand”». Herberto Helder pode estar descansado, ainda lhe restam seis anos
para vomitar mais livros “pré-póstumos” com CDs a acompanhar, sobrecapas de
papel luxuoso com selos promocionais, brindes, capas horrorosas em livros
difíceis de folhear (mero pormenor num objecto coleccionável). Perante isto, a
única coisa que se estranha é os advogados da “desaureolização” da poesia se
inquietarem com a estratégia promocional. Querem menos auréola do que isto, um
nome maior de uma poesia maior arrastados pelo charco? Esperem de pé pela versão
e-book de Servidões. Tem isto, então, tudo que ver com o folheto da Montag. A
Técnica do Golpe Literário (Maio de 2014) não podia chegar em melhor altura, sobretudo por
lembrar um editor-editor-editor cujas publicações eram, sem dúvida, do mais
requintado bom gosto que podemos imaginar, a par do bom gosto gráfico, da
qualidade das obras, dos autores, dos tradutores, dos ilustradores, dos
envolvidos. Mas também por recordar um sentido de provocação inédito entre nós, um despudor
literário e um gozo artístico que nunca mais voltámos a ter/ver/sentir. Puro terrorismo
poético, tal como o perfilou Hakim Bey. Expondo-se, o editor caiu no
esquecimento; recolhendo-se, o poeta terá o seu lugar no Olimpo. São ambos
mortais, e sobre ambos o Tempo fará das suas. Pelo que importa sublinhar, já
que de futurismo nada entendemos, o que em vida fazem os homens do Tempo. Pedro
Piedade Marques (n. 1971) recorda um mero episódio na vida deste editor combativo, um
episódio que ficou para a história dos episódios literários em terras lusas
como O Teste. Imaginemo-nos em Junho de 1964, recuemos precisamente cinquenta
anos neste país de tão previsíveis e acomodadas práticas. Na Sociedade Nacional
de Belas Artges, um jovem portuense emigrado na capital organiza um
recital de poesia. Arrasta uma sombra de polémica, embora nada que se compare
ao que aí vem. O Teste tem uma estrutura original e uma intenção clara: liam-se
poemas aos pares, de autores provenientes de “escolas” rivais
(neo-realistas/surrealistas) como se estivéssemos num ringue de boxe; ganhava
quem merecesse mais aplausos. Os resultados foram meticulosamente divulgados,
tendo sido Vítor Silva Tavares o árbitro que, de relógio na mão, cronometrou e
registou as palmas. Os resultados provocaram escândalo, nomeadamente quando um
tal de Francisco Sousa Tavares não gostou de ouvir Natércia Freire bater por
larga margem Sophia de Mello Breyner (que tinha acabado de receber o Grande
Prémio de Poesia). À distância de 50 anos, este episódio deixa de ser mero
episódio. É testemunho de um tempo onde a resistência tinha lugar com espírito
de combate. Ninguém anseia que o tempo volte para trás, nem sequer um grama de
nostalgia nos incomoda. Não podemos é fingir o quão incomodativo (“deprimente”
é a palavra certa) é ver o nosso maior poeta vivo afundar-se no pântano do
espectáculo que vampiriza todo o valor a uma obra poética. Esvaziado de
escândalo, de debate, de oportunidade crítica, de estímulo para o pensamento, o
fenómeno torna-se apenas ridículo. Ridículo que mais uma vez confirma a nossa
tese: a poesia morreu.
6 comentários:
A abrir o apetite para uma ida à livraria. Para folhear e comprar os livros "compráveis e folheáveis"! :)
Obrigada! :)
Que alívio & até que enfim
Maria, arranja-se sempre qualquer coisa.
Mais lenha para a fogueira: ontem, 17 de Junho de 2014, na quase falecida Bucholz, este diálogo entre o funcionário e o único outro cliente que lá estava: "Não imagina a quantidade de gente que aqui entra a perguntar se temos o último HHélder. Em cima da mesa, ao lado da caixa registadora estava um exemplar de Morte sem Mestre... para alguém que o tinha encomendado a tempo e horas.
Eu também não consigo deixar de pensar no banco alimentar. Mas, sinto com força o positivo que de tudo isto advém.
Posso sentir assim?
Abraço
cd com poemas? o homem não podia meter tudo no youtube ou coisa do género?
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