Tudo à minha volta cumpre
um destino silencioso e incompreensível
a que algum deus fugaz preside.
Fora de mim, nas costas da cadeira
o casaco, por exemplo, pertence
a uma ordem indistinta e inteira.
Dava bem todo o meu sentido prático
pela sua quieta permanência em si e na cadeira.
A realidade dos livros em cima da mesa
parece tão estritamente real!
As filhas falam, barulhentas e reais,
e eu próprio, em qualquer sítio, sou real.
Sob este rio real
o rio que me arrasta, de palavras,
corre dentro de mim ou fora de mim?
O que pensa? Estou lá, ou está lá alguém,
como está neste lugar (qual?),
e como os livros na mesa?
O que fala falta-me
em que coração real?
É duro sonhar e ser o sonho,
falar e ser as palavras!
E, no entanto, alguém fala enquanto fujo,
e falo do que, em mim, foge.
Sem que palavras alguma coisa é real?
As filhas sabem-no não o sabendo
e falam alto fora de mim
sem falarem nem não falarem.
Em mim tudo é em alguém
em qualquer sítio escuro
como se houvesse um muro
entre o que fala (quem?)
Manuel António Pina (n. 1943 - m. 2012), in O Caminho de Casa (1989). «O livro de estreia de Manuel António Pina tinha um título - longuíssimo - que parece ter sido pensado para recitação póstuma: "Ainda Não É o Fim Nem o Princípio do Mundo Calma É Apenas Um Pouco Tarde" (1974). Inaugurava-se aí uma persistente evocação e tematização da morte, expostas logo no primeiro verso da sua obra: "Os tempos não vão bons para nós, os mortos." / (...) Uma curiosa singularidade deve ser destacada: a sua obra é extremamente culta, sem que isso se tenha alguma vez tornado um obstáculo às leituras menos atentas à pluriestratificação criada por um aparelho imparável de citações ocultas ou exibidas, de envios explícitos ou implícitos. Mais do que a morte, a literatura - as palavras da literatura - foi o seu grande tema, a matéria primeira de que são feitos os seus poemas, que sempre se construíram a partir deste diálogo e no interior da tradição poética. (....) / Se neste diálogo com a literatura dos outros Cesariny ocupa um papel importante e revela uma afinidade eletiva é porque o humor e o tropismo lúdico e surrealizante assediam a poesia de Pina de todos os lados. Um dos aspectos que importa ser realçado é o facto de esta vocação para a metaposia não se ter tornado um exercício ascético e formalista» (António Guerreiro, Expresso, 27 de Outubro de 2012).
1 comentário:
tudo a minha volta é uma grande tristeza
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