Kafka, Ionesco, Becket, são geralmente apontados como mestres do absurdo. Na filosofia, o conceito adquiriu especial relevância com Kierkegaard e as leituras posteriores dos existencialistas. Fôssemos ousados, tenderíamos a considerar Aristóteles o único e grande mestre do absurdo. O esforço para estabelecer as leis do pensamento e da linguagem levado a cabo no Organon é um legado a que nenhum amante do paradoxo poderá escapar.
Nos Analíticos Posteriores, afirma: «Nos animais com cornos, salientamos como propriedades comuns a posse de um terceiro estômago, e de uma única fila de dentes. A questão seguinte é: de que espécies a possessão de cornos é predicado?» A esta questão, tentou responder Charles Fourier. No Quadro Analítico da Corneação, este utopista francês, ideólogo dos falanstérios*, baseou-se na experiência para, com invejável exigência empírica, estabelecer uma escala dos adultérios.
No folheto acima reproduzido, temos acesso a setenta e seis tipos eximiamente traduzidos por Aníbal Fernandes. Destaco três, não vá a cabeça do leitor sentir-se pesada:
n.º 1. CORNUDO PRÉVIO, ou ANTECIPADO, é aquele cuja mulher teve amores antes do sacramento e não leva ao esposo a virgindade. «Sê-lo apenas prévio é coisa que lhe não pesa», afirma Molière. Nota: Não são considerados prévios os que souberam de tais amores pretéritos e, apesar deles, acharam por bem casar-se; ou se juntaram a viúvas; ou, sabendo de anteriores galanterias, a elas se acomodaram.
n.º 38. CORNUDO SÓRDIDO é um sovina que, não oferecendo à sua mulher bons vestidos, obriga-a a escutar generosas ofertas de outrem. Tira, então, partido do amante que a sustenta, iludindo-se com essa intriga pela dupla vantagem que daí colhe.
n.º 76. CORNUDO DE REPOUSO é o casado com uma mulher tão feia que, nem ele nem os outros, a imaginam capaz de arranjar amante. Será este o caso que à mulher confere melhores possibilidades de um divertimento tranquilo, pois amantes há-de encontrá-los sempre, mais não seja com liberalidades ou pelo capricho de alguns homens em gostar das feias.
Regressando a Aristóteles, consideremos este exemplo: «porque não respira uma parede? — Porque não é um animal, respondemos. Se esta fosse na verdade a causa da ausência de respiração, ser um animal deveria ser a causa da respiração, de acordo com a norma de que, sendo a negação a causa da não-predicação, a afirmação é a causa da predicação. Por exemplo: se o desequilíbrio do quente e do frio é a causa de má saúde, o seu equilíbrio é a causa da boa saúde. E, na inversa, se a afirmação é causa da não-predicação, a negação é causa de não-predicação. Todavia, no exemplo oferecido, esta consequência não se produz, porque nem todo o animal respira».
Sobre animais que não respiram, desconheço literatura. Ouvi dizer que no fundo dos oceanos há criaturas que por lá se mantêm a vida inteira sem oxigénio. Seja. O que sei é que o exemplo de Aristóteles está desde logo contaminado pelo pressuposto incluído na dúvida. O erro do estagirita assemelha-se ao dos cornudos, a presunção de um domínio sobre a realidade que assenta invariavelmente em suposições improváveis. Ninguém pode garantir que uma parede não respire, pelo menos tanto quanto respiram as pedras onde a poesia começa.
*Sobre os falanstérios, esta ilustração de David Priestland: «François Marie Charles Fourier foi um dos principais teóricos desta utopia de prazer e criatividade. Marcado pela experiência do jacobinismo, rejeitou todas as formas de revolução violenta e de igualdade económica. Em lugar delas, partiu da noção de que a civilização moderna, que suprimira o natural desejo de prazer, era responsável pela miséria humana. Propôs em alternativa novas comunidades-modelo - «falanstérios» -, nas quais a responsabilidade social e as paixões coexistiriam. Cad auma dessas comunidades incluiria 1620 pessoas. O trabalho seria agradável e as tarefas seriam atribuídas consoante o carácter de cada indivíduo. As pessoas careciam também de variedade e o dia de trabalho seria dividido em períodos de duas horas, em cada um dos quais os trabalhadores fariam algo diferente. Fourier resolveu o problema de quem faria o trabalho desagradável com a proposta bizarramente original de que as crianças – os «Pequenos
Bárbaros», como lhes chamava -, que aparentemente gostavam de brincar na imundície,
executariam tarefas como limpar latrinas. Trouxe também à discussão a ideia de
que, no futuro, evoluiria um novo tipo de animal, o “antileão” e a “antibaleia”,
que seriam amigáveis para a humanidade e fariam o trabalho mais pesado». Comunidades-modelo com ou sem cornudos, ficou por esclarecer.
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