segunda-feira, 30 de junho de 2014

BODAS VERMELHAS


Vem a mim, Povo!
Vem a mim, Povo,
Com teu espírito grosseiro!
Teu copo de acre vinho novo
De que me causa náusea o cheiro!
Eu seja o último ceguinho!
Vem a mim, Povo! E o amor que minta!
Vem com as mangas de fresco linho
E com a faixa vermelha à cinta!
Vem com a força da beleza
- Beleza estúpida que mata...
Vem a mim, Povo, de carne presa
Aos ecos mágicos da prata!
Vem com a dança tua, bem tua,
Desejo surdo, inconsciente,
Sombra de sol, de mar, de lua,
A lembrar bichos que lembram gente...
Vem a mim, Povo! Em ti a crença
É quando muito religião:
Música, incenso... Onde é que estão
Palavras novas de alguém que pensa?
Vem com teu pronto esquecimento,
Teu choro alto de criança,
Tua bandeira que hoje balança
Ao menor sopro de qualquer vento!
Com teu olhar que não vê nada
A não ser pão que se descubra,
Com tua boca espessa, rubra,
Com tua mão curta, pesada,
Fere-me. Vá! Destrói a altura
Do meu altar de sonhador!

E a noite, a minha noite escura,
Em sangue mude a sua cor!...

Pedro Homem de Melo (n. 1904 - m. 1984), in Bodas Vermelhas (1947). «A sua pressuposta adesão aos princípios conservadores da política portuguesa do último meio-século acabou por o levar para o limbo a que excelentes escritores se viram condenados por uma difusão cultural que, no nosso país, foi sempre predominantemente de esquerda. (...) Ao mesmo tempo, a persistência de Homem de Melo em usar, em tempos experimentais, processos vincadamente tradicionais e temáticas de um populismo aristocratizante, a par de um critério não dominado de expressão sentimental, atingindo muitas vezes o ridículo e o dessorado imaginístico e lexical, um excesso interjectivo, uma redundância na qualidade da acentuação expressiva da amizade ou do amor, da presença física ou da despedida, afastaram a maioria dos leitores recentes e fizeram cair sobre ele o esperado silêncio generalizado. Contudo, se um dia fosse a sua obra servida por uma rigorosa antologia dos seus melhores textos, os leitores mais descuidados veriam aparecer muita expressão verbal surpreendente (...), e uma problematização do sentimento raramente conseguida por muita da poesia mais altissonantemente hoje amada. (...) Pedro Homem de Melo situa-se numa linha do passado do confessionalismo, da expressivização e da prosódia que deve ser lida contra as explorações mais recentes no espaço da poesia para podermos jogar, no solo rico da nossa própria poesia, em termos de compreensão e em termos de feitura, a ultrapassagem quer de uma quer de outra dessas tradições» (Joaquim Manuel Magalhães, in Os Dois Crepúsculos). 

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