domingo, 29 de junho de 2014

NA LUZ INCLINADA


As quatro partes que compõem Na Luz Inclinada (Companhia das Ilhas, Março de 2014) remetem para as estações do ano, começando cada uma delas com um poema em prosa ao mesmo tempo introdutório e sintetizador do tom geral dos poemas decorrentes. Esta escolha é reveladora de uma necessidade de organização que talvez se perdesse dado o carácter autónomo de cada um dos poemas, sendo que, neste caso, eles se ligam pela substância e não por uma intenção prévia de desenvolvimento temático. Na realidade, esta recolha de trinta e seis poemas reenvia-nos para os temas predilectos de Nuno Dempster (n. 1944). Quem conheça os seus livros anteriores, por certo não ficará insensível à coerência e à objectividade discursiva de uma poesia que começou a ser publicada tardiamente (2008) mas vai já em oito apreciáveis volumes. Quem desconheça os livros anteriores do autor, tem aqui uma excelente oportunidade para entrar em contacto com alguns dos seus melhores momentos.
A Primavera de Nuno Dempster respeita, em certa medida, a tradição: é tempo de fertilidade e de êxtase natural. Por outro lado, a exultação da natureza apela a uma suspensão do pensamento e, por consequência, a uma concentração no sentir que acaba por encalhar nas dúvidas e nos anseios do pensamento. Daí que à interrogação final do poema Tílias antes do solstício«Se a poesia se cala acerca / dos sinais de verão, / porque haviam as tílias de existir?» (p. 14) —, os primeiros versos de Sucedâneos respondam com crueza: «Esta náusea, este / viver sozinho contra o que me cerca / e contra uma poesia só imaginada» (p. 15). Respeitando a tradição, esta Primavera de Nuno Dempster é, igualmente, devoradora do imaginário idílico que a poesia consagrou à sua estação. Poemas como Invocação aos hesitantes e Antibucólica, ou a espécie de lamento doméstico implícito em Anúncio, estão entre os melhores do poeta, porque rejeitam um rendilhado primaveril de passarinhos cantarolantes e corolas florescentes preferindo cotejar esse momento da criação com a morte que toda a vida pressagia: «O sol não nasce em cada dia? Nasce. / O que é que um morto tem na boca? / Um tijolo amassado com o seu próprio barro. / Indecifrável? Passe. Não tem nada escrito / e a todos cabe o seu conforto» (p. 16).
Magníficos versos, estes onde a vida e a morte se interligam com uma naturalidade que a poesia autêntica não deixa iludir. Importa sublinhar, porém, que a náusea e a solidão testemunhadas em alguns versos não exibem posturas estéticas vazias de conteúdo, são fruto de uma experiência de vida, de uma maturidade onde os afectos se afirmam também pela sua ausência, onde o eros se manifesta em estado onírico e a realidade, pelo contrário, sublinha o declínio de que a passagem das estações é apenas o ritmo marcado pelo tempo (esse grande maestro). Deste modo, o Verão é, logo a abrir, tempo de férias e de incêndios, reminiscência da guerra na passagem de um helicóptero; o Outono avoluma a noção do declínio, introduz o sentimento de finitude e a sensação de exílio que a ausência e a perda do outro confere; o frio do Inverno recorre à memória, refugia-se numa segunda pessoa cuja proximidade é a das memórias passadas, recorre a retratos e a recortes paisagísticos, vivenciais, onde a busca de consolo parece constantemente estorvada por uma insatisfação idiossincrática e, sobretudo, pela consciência interna do Tempo na «lama idealmente branca» (p. 51).
Note-se, a título de exemplo, como o poema Instalação, da terceira parte, sintetiza com notável poupança imagética este pathos tatuado pela transitoriedade:

Instalação

Eu tinha suspeitado, o restaurante,
as casas conhecidas.
Uma vaga ameaça rodeava-me
naquele outono, a força de gravidade
que impele ao suicídio, entenda-se
a que enevoa e arroja em direcção
ao lugar onde irá ficar hirto
aquele que viveu em mim.
Alguém, quase um rapaz, abriu-me a porta.
A meio do jantar, contei-lhe:
«Andei por estes sítios,
bebi do vosso vinho, conheci
a rainha das vossas castas
e outras coisas da terra,
a poda, o milho, a rega,
as vacas que iam à ordenha no crepúsculo,
o fumo das lareiras
flutuava em estratos no ar de Outubro
e cheirava a castanhas no borralho.»
«Andou então por cá?»
Não respondi e logo perguntei:
«Conhece o Jorge, o António, a Mariana?»
«O Jorge era o meu pai, morreu,
e morreu o meu tio António,
a Mariana vive, quase cega.»
Uma névoa afundou-me
no tempo que deixara
de ser medido há muito.
Tudo estava parado, e iam surgindo
Estátuas de amargura.
Ainda perguntei: «E o seu tio Alberto?»
«Ah, esse vive, pois.» Parecia-me alegre,
e confessei: «Eu era amigo dele,
e um dia foi-se.»
«Mas está aí. Vou chamá-lo, se quiser.»
Não, não queria.
Perguntou-me quem eu era.
Não respondi, não ira responder-lhe,
não sou nenhum romeiro,
o Romeiro, aliás, nunca existiu,
não podia existir, tonitruante.
Carreguei as estátuas à saída
e trouxe-as para casa,
e no fim do poema
a instalação tornou ao restaurante,
mas sobrevive, oculta, na memória.


Talvez ficasse bem uma referência à agilidade elegíaca de um diálogo aparentemente circunstancial, mas o poeta transferiu essa circunstancialidade para o poema. Esta transferência, que aponta, talvez, para o carácter essencialmente biográfico de muita desta poesia, pode iludir pelo artifício técnico, mas não deixa ilusões quanto à capacidade que Nuno Dempster mais uma vez revela de, indo buscar matéria à memória, interpelar-nos a nós como também ele é interpelado pela «vida solitária» escondida por detrás dos livros. A isto chama-se autenticidade, que não é o mesmo que dizer confissionalidade ou mesmo verdade. Se não é tudo, é muito. É quanto me basta.

Sem comentários: