terça-feira, 24 de junho de 2014

EXERCÍCIO


Deixa
lentamente
que a tarde finde
verás depois ou entretanto
depende
que o que deixas acabar
não é mais do que a parte que a ti
te pertence.

Ali,
onde tu vês o que não existe
saberás, se te perderes um pouco,
que esse céu que o teu olhar
tantas vezes fingiu
fingiu uma vida inteira.

Depois, quando regressares,
e não souberes quem és,
isto é, quando te perderes de vez,
e tiveres aprendido por duas vezes
tudo o que há para aprender nesta vida
é possível que eu queira, se é que isto existe,
morrer contigo, morrer melhor.

Mas como te percebo,
eu próprio nunca abri os olhos
nunca me perdi antes
nunca me achei em nenhum céu.
Nunca, sequer, me levei de uma cor à outra.
A noite escura nunca me levou ao lugar que eu queria.

Morri apenas.
Demorei uma vida a morrer.
Como desejei.
Aos poucos,
ou de uma vez só,
como a tristeza quis.


António Quadros Ferro (n. 1983), in Um Pouco de Morte. Em 2009, o pequeno volume onde respiguei o poema aqui transcrito chamou-me a atenção para a poesia de António Quadros Ferro. Dispensava a prosa introdutória para perceber a presença de um autor consciente da génese do poema, embora o primeiro parágrafo explicite uma inquietação que os versos se encarregam de tornar mais densa e, por vezes, contraditória nos termos: «Tenho ideia de que o céu está enterrado e a sensação de que o meu pensamento se desinteressa do mundo também. Pergunto, às vezes, para mim, se quero acreditar, acreditar em Deus, quem sabe, mas os mortos, essas criações vivas, estão ainda aos bocados, e a vida, essa, claro, nem sempre aparece. Estou, estamos, todos sozinhos, esta é a verdade: mortos e acompanhados». Sendo clara, esta poesia surpreende-nos, aqui e acolá, com hesitações existenciais, provocando dúvidas sobre Deus, o sentido da vida, a eternidade. Certo tom aparentemente niilista esvazia o ser de sentido, coloca-o numa vazio onde palavras como loucura e delírio usurpam à poesia qualquer natureza milagrosa. Mas a morte assim transcrita aceita uma vitalidade que surge da sua própria radicalização, ou seja, a vida torna-se posterior à experiência, podendo a existência ser já entendida como experiência de morte. Ser é tempo, degenerescência, ruína. Realidade e sonho são, pois, invertidos nos seus papéis mais vulgares. Resulta o “exercício” num aluimento constante da identidade, sendo esta a faceta mais interessante de uma poesia que perturba pela firmeza e pela lucidez com que aborda as questões mais fundamentais que o homem pode colocar a si próprio.

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