segunda-feira, 23 de junho de 2014

PARA UMA COMPREENSÃO DO ÊXITO DO FUTEBOL

Eu sei que o futebol é um fenómeno complexo, que, a par dos seus atractivos, apresenta aspectos negativos, alienantes, condenáveis. Não o desconheço e recomendo até a leitura, por exemplo, dos artigos do professor José Esteves, pessoa competente, bem formada e realista. / (...) Será o futebol também um ópio do povo? Talvez o seja, embora a última Taça de Portugal entre a Académica e o Benfica o não tenha sido. Mas pode perfeitamente representar o preenchimento parcial do ócio (oposto a «negócio» - nec otium), fundamental para o homem, como desde a antiguidade se reconheceu. Coemça a ser alienante quando leva a esquecer deveres primordiais: cívicos, sindicais, familiares, profissionais. Sou um espectador de futebol, sou um leitor de jornais desportivos, mas raramente falo de futebol, porque não tenho tempo para isso e porque, depois de um desafio de futebol, nada fica, além da fotografia, do filme ou da crónica. / Não há arte mais efémera do que a da palavra, creio que dizia, não sem certa mágoa António Cândido acerca da oratória, no tempo em que a havia em Portugal. Mas igualmente efémero é o desafio e mesmo o lance de futebol. O futebol é uma imagem emblemática do tempo que passa, da nossa condição mortal. Tudo o que é humano é mortal, as próprias civilizações o são, embora a Saint-John Perse lhe custe reconhecê-lo. Daí, paradoxalmente, um dos encantos da vida: jogar tudo, arriscar tudo, perder tudo. A própria palavra se devia de preferência só escrever na areia, para que o mar, ao subir, a lambesse e apagasse para sempre. Que teria escrito na terra com o dedo Jesus Cristo, enquanto desafiava as pessoas bem pensantes do seu meio e do seu tempo a que apedrejassem a adúltera? Tudo morre no futebol: o jogo acaba, a multidão dispersa, o estádio será daí a pouco uma catedral vazia, uma praia abandonada no fim do Verão. Mesmo o jogador termina cedo a sua vida desportiva. Tinha um nome simples, muitas vezes uma alcunha, uma designação afectiva, facilmente pronunciável. Depois, mesmo que, como treinador, orientador ou dirigente, continue ligado ao futebol, já será designado pelo nome e pelos apelidos e tratado por senhor. Não morrem jovens os que os deuses amam? A concepção é antiga, mas Fernando Pessoa actualizou-a, ao referir-se a Mário de Sá-Carneiro. / O homem moderno é um homem sem mitos, esses grandes mitos refrescantes de que falava Saint-Exupéry: perdeu Deus, perdeu o ideal de cruzada, perdeu a pátria, perdeu o próprio homem. Por isso tudo lhe serve de mito. Basta acompanhar Roland Barthes no seu exame dos mitos modernos como, por exemplo, o rosto de Greta Garbo, o «strip-tease» ou a Volta à França. O futebol é um mito moderno. Tem de se acreditar nalguma coisa: acredita-se no jogador de futebol, tem-se a mística do clube. Os fracassos diários, as dificuldades da vida, a própria fome esquecem-se momentaneamente. Decorre o jogo, desenvolve-se a acção, suspendem-se as inibições, tudo se sublima, verifica-se a catarse de que falava Aristóteles. Somos velhos, coxeamos, custa-nos a andar? É ver como corremos, como somos jovens. Indentificamo-nos com os jogadores. / Num mundo sem religião, o futebol é a religião moderna e os jogadores, os ídolos. Um pedaço de camisola, um autógrafo não são relíquias? Não se toca no atleta como quem tocava na imagem? O jogador é o sacerdote: oficia por nós. O estádio é a catedral Uma aglomeração em Fátima fica a dever muito a uma enchente no Estádio da Luz e mesmo mais belo que uma procissão das velas é o ininterrupto acender e apagar de luzinhas, observável durante os desafios à noite - os cigarros dos espectadores. De resto, tão pagã uma coisa como a outra. Não se estará igualmente longe, quer num caso quer no outro, dessa adoração em espírito e em verdade de que Cristo falava à samaritana? E um hino à vida sempre será preferível a uma exaltação da morte. / (...) O futebol é um espectáculo único. Por mim, devo-lhe das grandes intuições da minha vida. Nunca intuí tão ao vivo a morte como, certa vez, ao entrar no Estádio Nacional, cheio de sol e de gente. Nem nunca senti tanto a solidão como por vezes no meio de tamanhas multidões. / O futebol é a epopeia possível hoje em dia. A acção dos heróis será narrada depois pelos modernos poetas épicos que são os jornalistas desportivos. Mas isso daria assunto para outro artigo.

Ruy Belo, in A Bola, 06/05/1971, Obra Poética de Ruy Belo - volume 3, org. de Joaquim Manuel Magalhães e Maria Jorge Vilar de Figueiredo, Editorial Presença, 1984, pp. 267-269.

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