terça-feira, 10 de junho de 2014

FALA O ARRUMADOR DE AUTOMÓVEIS


Assustado com a miséria e estes anos,
pouco espero de Deus e dos homens.
Não mendigo, olho de soslaio, adivinho,
sem gratidão guardo no bolso os óbolos.
E fui pescador, depois faroleiro: longe
deitava a alma, relâmpago
sobre falésias, em estrelas tocava,
a sirene era o meu grito de amor.
Transluzente e distante e bom
como clarões de um farol nunca foi fácil:
algo se afundava debaixo de mim,
desconhecida culpa. Odeio, sim, odeio
este parque onde chuva e sol impõem as mãos
e na pele penetram sem bálsamo.
Primeiro a luxúria, depois vinho,
escuridão. No fundo de um poço
cujas paredes ressumam lágrimas e avencas.
Custa ganhar a vida e perdê-la.
Tudo foi defraudado, sou eu
- eu ou alguém por mim - quem aperta
desde a infância o nó que me estrangula.

António Osório (n. 1933), in A Ignorância da Morte (1978). «Em António Osório, "raiz afectuosa" é a metáfora dessa comedida vigília sobre a paixão das coisas: pelo mais fundo, persistente e calculado caminho atingir o interior dos sentimentos, dizer a razão das mágoas e das euforias. Quando a poesia assim é entendida, o mundo parece nascer a cada leitura de um poema, as coisas parecem irromper de um território ainda não visto, de tal ordem retoma uma atenção emocionada a nomenclatura das cosias comuns. Isso que a nossa recente poesia parecia ter esquecido. Um vocabulário cuja novidade não está em ser prensado em qualquer rebusque, mas em relembrar designações das coisas que um corte de contacto com uma vida mais próxima das raízes fez perder. (...) No caso da obra de António Osório, a intensidade sentimental não deixa de ser uma das bases da sua poesia, mas inscrita nesse desígnio de recusa da sentimentalização, quer seja no assumir da voz apelativa, quer seja na mágoa falaciosa de tornar o mundo natural testemunha de uma qualquer ruína pessoal. Desse modo, a busca de "objectivos correlativos" é um dos cernes desta escrita. Nunca perder de vista que um sentimento, uma emoção adquirem valor poético não tanto pela sua declaração, mas pela busca de algo - um objecto, uma situação, uma personagem - que cristalize a efectividade do sentimento sentido e a torne partilhável a uma qualquer circunstância de leitura» (Joaquim Manuel Magalhães, in Os Dois Crepúsculos). 

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