terça-feira, 10 de junho de 2014

O MAFARRICO

Era uma vez um mafarrico que andava bastante aborrecido. Já não conseguia espetar o seu tridente em nenhum inocente desacautelado, não porque lhe faltassem forças para cerrar os dentes e executar o gesto técnico adequado, mas, e esta é que é a verdade, porque os seus dentes já só esboçavam sorrisos e as suas garras já só sonhavam com carinhos. Da última vez que se olhou ao espelho contorceu a cara numa expressão de horror: quase podia jurar que em seus negros chifres assomava agora o esboço das florzinhas brancas que no alto das montanhas convidam o viajante solitário a um momento de descanso nos braços da placidez.

O pobre mafarrico passou em revista as imagens mentais das acções passadas. Mas o conforto dos antigos vícios em breve cedeu lugar à imagem rude do presente; e o vómito saiu-lhe a emoldurar os primeiros indícios da bondade.

Largou o tridente.
Tocou no alto da cabeça com a ponta dos dedos: não era um pesadelo.
Era um sonho, um sonho cor-de-rosa, fatídico, verdadeiro como um cisne a abraçar um lago.
Há uma diferença entre sonhos e pesadelos, como se vê.
Não, não se vê, porque só vemos aquilo em que nos transformamos.
Pousou as rosas.
Ligou a televisão, cheirou a sopa no limiar da cozinha.

Rui Costa, in Big Ode, n.º 5, tema: pesadelo, Julho de 2008 - Outubro de 2008, edição e design de Rodrigo Miragaia, design de conceito de Rodrigo Miragaia e Sara Rocio, coordenação editorial de Maria João Lopes Fernandes. 

2 comentários:

Cuca, a Pirata disse...

:)
Obrigada por ter partilhado isso, Henrique.

hmbf disse...

Cuca, é só seguir a etiqueta. Há mais e outros virão.