domingo, 22 de junho de 2014

MARY SHELLEY


É certamente um dos melhores livros publicados em Portugal este ano: Mary Shelley – Uma biografia da autora de Frankenstein (Antígona, Fevereiro de 2014), de Cathy Bernheim (n. 1946), com tradução de José Alfaro. A autora evita o caminho fácil de muitas biografias, ou seja, a mera reconstrução da vida do biografado com base em fontes mais ou menos credíveis. Basta percorrer a extensa cronologia disponibilizada no final para perceber que um só volume não bastaria. Mary Shelley (n. 1797 – m. 1851) é das personalidades mais estimulantes que a história da literatura universal conheceu, com uma vida riquíssima em acontecimentos, aventuras, dramas, paixões que podem inspirar inúmeras tragédias. O berço carregou-a com a pesada herança de uma família assaz considerada nos círculos intelectuais londrinos. A mãe, Mary Wollstonecraft (n. 1759 – m. 1797), era uma reputada feminista, enquanto o pai, William Godwin (n. 1756 – m. 1836), foi um importante filósofo que esteve na origem do pensamento anarquista. Mas este é apenas o genoma de uma vida cuja experiência não está ao alcance da nossa compreensão. A esta pesada herança acrescentou-se a morte da mãe, ocorrida dias depois do nascimento de Mary Shelley devido a complicações durante o parto. O nascimento da autora de Frankenstein ficará, deste modo, irremediavelmente ligado à perda da mãe, vindo este facto a ter repercussões na obra que são imagináveis (embora difíceis de determinar). Porém, o grande acontecimento na vida da escritora dar-se-á em 1814, tinha Mary apenas dezassete anos. O poeta romântico e anarquista Percy B. Shelley (n. 1792 – m. 1822), admirador da obra de William Godwin, conhece Mary durante uma visita à casa de família. Não precisaram de muito para jurarem amor eterno um ao outro. Percy B. Shelley era então casado e preparava-se para ser pai pela segunda vez, mas nenhum escrúpulo se entrepôs na declaração. Godwin, apesar do pensamento libertário, viu-se na prática obrigado a certo conservadorismo. Tentou afastá-los um do outro sem sucesso, pois em Julho ambos se colocaram em fuga na companhia de Claire Clairmont (meia-irmã de Mary, futura amante de Lord Byron). Os anos de viagem, que foram praticamente todos os que passaram juntos, são absolutamente alucinantes: «Vistos de longe, Mary, Shelley, e mesmo Byron, parecem crianças empenhadas em viver de acordo com princípios que estão em total ruptura com o seu tempo, embora nem sempre o conseguindo» (p. 77). Ao perto, a realidade assume outras feições. Apesar das dificuldades materiais, do escândalo e das ameaças de prisão por dívidas que recaíam sobre Percy B. Shelley (jovem de boas famílias que viveu para estourar o que tinha e não tinha, com tanta generosidade como imprudência), estes três andarilhos sobreviveram consagrando a sua existência à liberdade, ao amor, à poesia. Paga-se caro tal dedicação, e Mary não fez por menos:
- em Março de 1815 morre-lhe o primeiro filho (viveu duas semanas);
- em Janeiro de 1816 nasce o segundo filho (morrerá em Junho de 1819);
- em Setembro de 1817 nasce o terceiro filho (falecerá um ano depois);
- sobreviverá apenas Percy Florence Shelley, nascido em Novembro de 1819. Pelo meio, o suicídio de uma meia-irmã, o mesmo destino para a primeira mulher de Percy B. e a perda de uma pequena adoptada pelo poeta em Itália. Imagina-se o turbilhão de emoções que terão estado na génese de Frankenstein, romance que Mary Shelley começou a redigir em Julho de 1816 na sequência de uma noite de histórias góticas, na companhia de Byron, entre outros, na villa Diodati em Genebra. A primeira edição data de Março de 1818, após a recusa de dois editores, sem indicação do nome do autor e com prefácio de Shelley. O êxito imediato da obra, revista várias vezes em posteriores edições, compreende-se: «A nossa sociedade sobremedicalizada vê antes de mais no monstro de Frankenstein um homem coberto de cicatrizes, esquecendo por vezes que ele nunca esteve propriamente vivo. Sobrevivente das experiências do médico louco como outros poderiam ser sobreviventes das experiências dos médicos nazis, colhendo florzinhas na margem dos ribeiros para as atirar à água, quase chorando a ouvir um violino, o pobre monstro é mais uma vítima do que um verdugo. Vítima da sua fealdade e dos cânones de beleza assassinos que o condenam à errância, vinga-se como pode, ou seja, com maldade» (p. 88). Apesar de não ser a única obra de Mary Shelley, nem sequer a primeira, Cathy Bernheim dedica-lhe especial atenção, lendo-a à luz das sucessivas adaptações que fizeram perdurar no tempo uma das mais fortes personagens de ficção algumas vez imaginadas. Importa sublinhar que a quarta parte desta biografia é toda ela ocupada com um ensaio sobre a tradução de Frankenstein e extensos excertos da própria obra, acrescentando-se inúmeros dados sobre as repercussões do monstro em obras posteriores. Mas se a vida de Mary Shelley conheceu na publicação da sua obra-prima um acto único, menos não podemos julgar da perda que terá constituído o desaparecimento súbito de Percy B. Shelley. Embora Bernheim aponte um estado de fadiga e fractura entre ambos aquando da estadia italiana, onde perderam o terceiro filho e, logo de seguida, o poeta apareceu com um bebé adoptado, a verdade é que o amor entre ambos só podia ser superado pela morte. E ela apareceu, primeiro, sob a forma de ameaça: em Abril de 1922, «na sequência de um aborto espontâneo, Mary tem uma hemorragia tão grave que só fica a dever a vida à presença de espírito de Shelley, que a mergulha numa selha de água gelada. O quinto filho de Mary e de Shelley não verá assim a luz do dia» (pp. 120-121). Mesma sorte não teve o autor de Epipsychidion, que, durante a convalescença de Mary, resolveu dar um passeio no veleiro Ariel num dia de forte tempestade. Treze dias depois o cadáver apareceu, trazido pelas ondas. Após a morte de Percy B. Shelley, Mary Shelley tentou encontrar uma paz que sempre lhe fugiu. Dedicou-se à escrita, ao único filho sobrevivente, à publicação da obra do marido, tendo por vezes que enfrentar a complexa teia de interesses familiares onde se viu enredada e as acusações de uma sociedade que não estava preparada para uma mulher que «consegue descrever o sentimento misto de horror e de amor que caracteriza a vinda ao mundo, enunciando-o depois como um dado objectivo da experiência humana. Nisto, ela é de uma espantosa modernidade» (p. 149). 

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