É certamente um dos melhores livros publicados em Portugal
este ano: Mary Shelley – Uma biografia da autora de Frankenstein (Antígona,
Fevereiro de 2014), de Cathy Bernheim (n. 1946), com tradução de José Alfaro. A
autora evita o caminho fácil de muitas biografias, ou seja, a mera reconstrução
da vida do biografado com base em fontes mais ou menos credíveis. Basta
percorrer a extensa cronologia disponibilizada no final para perceber que um só
volume não bastaria. Mary Shelley (n. 1797 – m. 1851) é das personalidades mais
estimulantes que a história da literatura universal conheceu, com uma vida riquíssima
em acontecimentos, aventuras, dramas, paixões que podem inspirar inúmeras tragédias.
O berço carregou-a com a pesada herança de uma família assaz considerada nos círculos
intelectuais londrinos. A mãe, Mary Wollstonecraft (n. 1759 – m. 1797), era uma
reputada feminista, enquanto o pai, William Godwin (n. 1756 – m. 1836), foi um importante
filósofo que esteve na origem do pensamento anarquista. Mas este é apenas o genoma de uma vida cuja experiência não está ao alcance da nossa compreensão. A esta pesada herança
acrescentou-se a morte da mãe, ocorrida dias depois do nascimento de Mary Shelley
devido a complicações durante o parto. O nascimento da autora de Frankenstein
ficará, deste modo, irremediavelmente ligado à perda da mãe, vindo este facto a
ter repercussões na obra que são imagináveis (embora difíceis de determinar). Porém,
o grande acontecimento na vida da escritora dar-se-á em 1814, tinha Mary apenas
dezassete anos. O poeta romântico e anarquista Percy B. Shelley (n. 1792 – m. 1822),
admirador da obra de William Godwin, conhece Mary durante uma visita à casa de
família. Não precisaram de muito para jurarem amor eterno um ao outro. Percy
B. Shelley era então casado e preparava-se para ser pai pela segunda vez, mas
nenhum escrúpulo se entrepôs na declaração. Godwin, apesar do pensamento libertário,
viu-se na prática obrigado a certo conservadorismo. Tentou afastá-los um do outro
sem sucesso, pois em Julho ambos se colocaram em fuga na companhia de Claire
Clairmont (meia-irmã de Mary, futura amante de Lord Byron). Os anos de viagem,
que foram praticamente todos os que passaram juntos, são absolutamente
alucinantes: «Vistos de longe, Mary, Shelley, e mesmo Byron, parecem crianças
empenhadas em viver de acordo com princípios que estão em total ruptura com o
seu tempo, embora nem sempre o conseguindo» (p. 77). Ao perto, a realidade
assume outras feições. Apesar das dificuldades materiais, do escândalo e das
ameaças de prisão por dívidas que recaíam sobre Percy B. Shelley (jovem de boas
famílias que viveu para estourar o que tinha e não tinha, com tanta
generosidade como imprudência), estes três andarilhos sobreviveram consagrando
a sua existência à liberdade, ao amor, à poesia. Paga-se caro tal dedicação, e
Mary não fez por menos:
- em Março de 1815 morre-lhe o primeiro filho (viveu duas
semanas);
- em Janeiro de 1816 nasce o segundo filho (morrerá em Junho
de 1819);
- em Setembro de 1817 nasce o terceiro filho (falecerá um
ano depois);
- sobreviverá apenas Percy Florence Shelley, nascido em
Novembro de 1819. Pelo meio, o suicídio de uma meia-irmã, o mesmo destino para
a primeira mulher de Percy B. e a perda de uma pequena adoptada pelo poeta em
Itália. Imagina-se o turbilhão de emoções que terão estado na génese de
Frankenstein, romance que Mary Shelley começou a redigir em Julho de 1816 na
sequência de uma noite de histórias góticas, na companhia de Byron, entre
outros, na villa Diodati em Genebra. A primeira edição data de Março de 1818, após
a recusa de dois editores, sem indicação do nome do autor e com prefácio de
Shelley. O êxito imediato da obra, revista várias vezes em posteriores edições,
compreende-se: «A nossa sociedade sobremedicalizada vê antes de mais no monstro
de Frankenstein um homem coberto de cicatrizes, esquecendo por vezes que ele
nunca esteve propriamente vivo. Sobrevivente das experiências do médico louco
como outros poderiam ser sobreviventes das experiências dos médicos nazis,
colhendo florzinhas na margem dos ribeiros para as atirar à água, quase
chorando a ouvir um violino, o pobre monstro é mais uma vítima do que um
verdugo. Vítima da sua fealdade e dos cânones de beleza assassinos que o
condenam à errância, vinga-se como pode, ou seja, com maldade» (p. 88). Apesar
de não ser a única obra de Mary Shelley, nem sequer a primeira, Cathy Bernheim
dedica-lhe especial atenção, lendo-a à luz das sucessivas
adaptações que fizeram perdurar no tempo uma das mais fortes personagens de
ficção algumas vez imaginadas. Importa sublinhar que a quarta parte desta
biografia é toda ela ocupada com um ensaio sobre a tradução de Frankenstein e
extensos excertos da própria obra, acrescentando-se inúmeros dados sobre as
repercussões do monstro em obras posteriores. Mas se a vida de Mary Shelley
conheceu na publicação da sua obra-prima um acto único, menos não podemos julgar
da perda que terá constituído o desaparecimento súbito de Percy B. Shelley. Embora
Bernheim aponte um estado de fadiga e fractura entre ambos aquando da estadia
italiana, onde perderam o terceiro filho e, logo de seguida, o poeta apareceu com um bebé adoptado, a verdade é que o amor entre ambos só podia ser superado pela morte. E ela apareceu, primeiro, sob a forma de ameaça: em
Abril de 1922, «na sequência de um aborto espontâneo, Mary tem uma hemorragia tão
grave que só fica a dever a vida à presença de espírito de Shelley, que a
mergulha numa selha de água gelada. O quinto filho de Mary e de Shelley não verá
assim a luz do dia» (pp. 120-121). Mesma sorte não teve o autor de
Epipsychidion, que, durante a convalescença de Mary, resolveu dar um passeio no
veleiro Ariel num dia de forte tempestade. Treze dias depois o cadáver apareceu,
trazido pelas ondas. Após a morte de Percy B. Shelley, Mary Shelley tentou
encontrar uma paz que sempre lhe fugiu. Dedicou-se à escrita, ao único filho
sobrevivente, à publicação da obra do marido, tendo por vezes que enfrentar a
complexa teia de interesses familiares onde se viu enredada e as acusações de
uma sociedade que não estava preparada para uma mulher que «consegue descrever
o sentimento misto de horror e de amor que caracteriza a vinda ao mundo,
enunciando-o depois como um dado objectivo da experiência humana. Nisto, ela é
de uma espantosa modernidade» (p. 149).
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