sábado, 12 de julho de 2014

CARNE DE PORCO

(imagem respigada aqui)

Grâce à vous une robe a passé dans ma vie.
Cyrano de Bergerac

Educado na contemplação das estátuas
gregas de efebos em mármore incolor
e na leitura de poetas e filósofos
de estrita e firme observância platónica,
entendido em vasos com erastas e erómenos
e em vidas de discípulos do amor socrático,
ao parar frente a um torso desconhecido
(igual ao peito das sereias nos rochedos)
próximo do mastro de sinal encarnado
sobre o macadame das avenidas novas,
vê fora do automóvel um par de seios,
transtornado pelo apetite de provar
o defeso gosto a fêmea como um judeu
proibido por lei de comer carne de porco.


José António Almeida (n. 1960), in O Rei de Sodoma e algumas palavras em sua homenagem (1993). «O espírito de organização é o principal gerador de consistência de sentido neste volume. Tanto mais quanto a sua qualidade dominante é precisamente a coesão e a firmeza em redor de direitos centrais do humano. A «ferocidade»^do rigor métrico e das opções estróficas é uma «medida» em que se fundem os intuitos expressivos e os intuitos morais. Pois que este livro eleva o conceito (formal e significativo) a um grau de exigência radical entre os novos poetas portugueses. Este poeta procura afirmar, silencioso e distante, um jeito conceptual que prenda, na consistência das distribuições e escolhas estróficas, uma segurança de valores, de atitudes, até mesmo de combates. (...) Contudo, a temática destes poemas nunca procura impor-se pelo excessivo do declarado. Pelo contrário, vive da elipse, da sobriedade e contenção vocabulares, da harmonia prosódica e duma contínua metonímia memoriosa onde os episódios são evocados fora de qualquer imediatismo brutal, antes tecendo uma ternura afectiva, mesmo nos encontros casuais; e um ambiente descritivo de enredos doces e perdidos que carregam de «canção» estas - apetece chamar-lhes assim - «coplas». Mesmo que por vezes atinjam essa tristeza do canto que um verso pode subitamente resumir: «funeral do amor é a amizade»» (Joaquim Manuel Magalhães, in Rima Pobre).

Sem comentários: