Agora a morte é diferente,
facilitaram-nos o desespero, a angústia
tem já ar condicionado. Em vez
dos bancos de jardim, por certo demasiado
rudes, temos enfim lugares amplos
onde apodrecer a miséria simples do corpo.
Que incalculável felicidade a de percorrer
galerias de nada tresandando a limpeza
e segurança. Aí se abandonam jovens
rebanhos sentados sorrindo ao
vazio palpável, ou ferozmente no meio
dele. Revezam-se - mas quase diríamos
que são os mesmos ainda, exaustos
de contentamento. Dêmos pois as boas-vindas a esses
heróis do betão consagrado. Só eles nos fazem
acreditar no advento do romantismo cibernético.
É doce a merda que nos sepulta
e o cancro que um dia destes nos matará
há-de ser muito limpo, quase ecológico.
Manuel de Freitas (n. 1972), in Todos Contentes e Eu Também (2000). «Desde o seu primeiro livro de poemas (...), Manuel de Freitas colocou-se numa linha de tradição que provinha da turbulência anímica romântica (Baudelaire) e de continuações radicais, no desdobramento do século XX, dessa situação articulada com uma insistência niilista da relação do corpo com o mundo e do pensamento sobre esse mesmo mundo, via as referências a Malcolm Lowry e a E. M. Cioran» (Joaquim Manuel Magalhães, Expresso, 2005). «A poesia não é aqui uma questão de estilo ou de forma, da "metáfora que não usarei", mas uma questão de ética - de uma ética da imanência guiada por um princípio de coerência e justeza em que coincidem vida e escrita» (João Barrento, Público, 2005). «(...) Estamos perante uma poesia que, a par do seu carácter de narrativa íntima, aposta numa arquitectura retórica que dá pouco ou nenhum crédito à grandiloquência, mesmo quando modela o horror e o nojo, ou quando realça a degradação e o desastre. Uma poesia de grande economia verbal, que se alimenta enfaticamente dessa contenção, no que é um dos seus grandes méritos» (Carlos Bessa, Expresso, 2005). «Impressiona-nos o ritmo, a cadência de quem se move segundo o movimento do próprio olhar, um estilo de cinematógrafo projectando imagens sobre um lençol branco, num tipo de escrita que muitas vezes quase resvala para a prosa, para a alusão banal, para o pormenor narrativo, mas que consegue sempre, pela escolha de elementos que sobressaemna imagem, pelos cortes inesperados, pela montagem subtil dos efeitos da memória, inclinar-nos para a grande reflexão poética sobre o tempo e a morte» (Eduardo Prado Coelho, Público, 2003).
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