quinta-feira, 10 de julho de 2014

HIGIENE MENTAL

Nas mais de quarenta páginas que dedica à poesia de João Miguel Fernandes Jorge em Rima Pobre, Joaquim Manuel Magalhães cita um episódio paradigmático de um certo olhar sobre “os portugueses”:

vv. 14-15 — Ataque à maneira como os portugueses se deixam transformar à medida em que envelhecem; comparados a «porcos» em muitos dos seus comportamentos civilizacionais; daí que só enquanto novos, isto é, «leitões», possam ser reconhecidos como «bonitos»: ao contrário do que se supõe na civilização nórdica. (O jogo de palavras provém de um ataque a uma assistência maioritariamente jovem num programa de vídeos musicais, organizado por Miguel Esteves Cardoso na Fundação Gulbenkian. Vendo esse público reagir com gargalhadas provincianas a um vídeo de Marc Almond, o Miguel gritaria «porcos!» à assistência. O João Miguel ter-lhe-ia dito, para o acalmar, que eram tão novos e não tinham assim tão mau aspecto. O Miguel ter-lhe-á retorquido que então eram apenas «leitões» e em breve seriam «porcos».)

Excluindo o preconceito das gargalhadas provincianas, que suponho sejam distintas das gargalhadas urbanas onde o acontecimento teve lugar, consigo imaginar a situação. Lembra-me, aliás, uma outra, ocorrida em Coimbra aquando de uma leitura de poesia levada a cabo por Al Berto. O registo sonoro é sobejamente conhecido. Mas isto nada tem que ver com “comportamentos civilizacionais”, os quais são bem mais contidos e desinteressantes do que a javardice aludida permite supor. Isto tem que ver com uma outra realidade, muito mais complexa de expor e de pensar, mas que Ruy Belo sintetizou com uma expressão no prefácio ao primeiro livro de João Miguel Fernandes Jorge, prefácio esse, aliás, densamente rebatido por Joaquim Manuel Magalhães no ensaio supracitado. Escreve Ruy Belo:

Oxalá João Miguel venha a ser não só um poeta, num tempo em que a poesia morreu, mas também o «maor», como diz o Sr. Joaquim Baltazar, o banheiro da Senhora da Guia.

O sublinhado é meu. Aquele tempo em que a poesia morreu, o nosso, não nos livra desta ambivalência que é persistir na poesia para lá da morte. Sabemos que a poesia está morta, mas também sabemos que nem por isso se ausentou das nossas vidas. Torna-se, de facto, difícil encontrá-la onde o espectáculo deplorável da humanidade indiferente, distraída, apalermada se impõe. Mas de quando em vez lá surge, no meio da multidão, como um espectro que o poeta distingue. Há qualquer coisa de mediúnico no poeta hodierno, o que faz deste Portugal país de poetas (expressão por si só já deplorável) um país de médiuns, tanto quanto de trapaceiros, burlões, prestidigitadores, velhacos, vigaristas, intrujões, etc., etc., etc., que mais facilmente prosperam na cidade do que na província, onde as distâncias e o silêncio garantem, pelo menos, um certo isolamento imprescindível à higiene mental.

Sem comentários: