Nas mais de quarenta páginas que dedica à poesia de João
Miguel Fernandes Jorge em Rima Pobre, Joaquim Manuel Magalhães cita um episódio
paradigmático de um certo olhar sobre “os portugueses”:
vv. 14-15 — Ataque à maneira como os portugueses se deixam
transformar à medida em que envelhecem; comparados a «porcos» em muitos dos
seus comportamentos civilizacionais; daí que só enquanto novos, isto é, «leitões»,
possam ser reconhecidos como «bonitos»: ao contrário do que se supõe na
civilização nórdica. (O jogo de palavras provém de um ataque a uma assistência
maioritariamente jovem num programa de vídeos musicais, organizado por Miguel
Esteves Cardoso na Fundação Gulbenkian. Vendo esse público reagir com
gargalhadas provincianas a um vídeo de Marc Almond, o Miguel gritaria «porcos!»
à assistência. O João Miguel ter-lhe-ia dito, para o acalmar, que eram tão
novos e não tinham assim tão mau aspecto. O Miguel ter-lhe-á retorquido que então
eram apenas «leitões» e em breve seriam «porcos».)
Excluindo o preconceito das gargalhadas provincianas, que suponho sejam distintas das gargalhadas urbanas onde o acontecimento teve lugar, consigo imaginar a situação. Lembra-me,
aliás, uma outra, ocorrida em Coimbra aquando de uma leitura de poesia levada a
cabo por Al Berto. O registo sonoro é sobejamente conhecido. Mas isto nada tem
que ver com “comportamentos civilizacionais”, os quais são bem mais contidos e
desinteressantes do que a javardice aludida permite supor. Isto tem que ver com
uma outra realidade, muito mais complexa de expor e de pensar, mas que Ruy Belo
sintetizou com uma expressão no prefácio ao primeiro livro de João Miguel
Fernandes Jorge, prefácio esse, aliás, densamente rebatido por Joaquim Manuel
Magalhães no ensaio supracitado. Escreve Ruy Belo:
Oxalá João Miguel venha a ser não só um poeta, num tempo em
que a poesia morreu, mas também o «maor», como diz o Sr. Joaquim Baltazar, o
banheiro da Senhora da Guia.
O sublinhado é meu. Aquele tempo em que a poesia morreu, o
nosso, não nos livra desta ambivalência que é persistir na poesia para lá da
morte. Sabemos que a poesia está morta, mas também sabemos que nem por isso se
ausentou das nossas vidas. Torna-se, de facto, difícil encontrá-la onde o
espectáculo deplorável da humanidade indiferente, distraída, apalermada se impõe.
Mas de quando em vez lá surge, no meio da multidão, como um espectro que o
poeta distingue. Há qualquer coisa de mediúnico no poeta hodierno, o que faz
deste Portugal país de poetas (expressão por si só já deplorável) um país de médiuns,
tanto quanto de trapaceiros, burlões, prestidigitadores, velhacos, vigaristas, intrujões,
etc., etc., etc., que mais facilmente prosperam na cidade do que na província,
onde as distâncias e o silêncio garantem, pelo menos, um certo isolamento
imprescindível à higiene mental.
Sem comentários:
Enviar um comentário