quinta-feira, 10 de julho de 2014

DURANTE UM EXERCÍCIO DE FILOSOFIA


Para a Beatriz Vieira

Estou aqui sentado na cadeira que
me cabe como professor, a secretária, o estrado
o negro quadro com restos de giz e marcas de
apagador. A ardósia coberta de falhas, pequenas
feridas nas horas de aprendizagem.
Os alunos aí estão à minha frente, quietos e presos
à rapidez da sua escrita ou à
lentidão que faz de outros a extrema hesitação.
São alunos do curso nocturno e respondem a um
exercício sobre Platão. É tão pouco o que conheço
do mover das suas mãos e deles sei quase e deles
sei tanto sob a distância e a proximidade desta mesa,
deste estrado de aula.
Uma turma pequena, apenas sete alunos, posso
dizer-lhes os nomes: Susana, uma negra de quarenta
anos que vive num seminário adventista (mal
percebo o seu português e irá, decerto, na
pergunta sobre a acusação de Sócrates, escrever-
-me deuses com letra maiúscula e falará deles no
singular); Gonçalo que tem dezassete anos e que,
filho de emigrantes, fala melhor alemão do que
a nossa língua. Vem às vezes contar-me de Ian
Curtis, de Patty Smith, de Jim Morrison e de
Rimbaud e em qualquer livraria descobriu um livro
meu por causa de um dos primeiros. Por causa
dessa leitura, oblíqua, junto à estante da livraria,
veio dizer-me que também era monárquico e desde
então, sempre que vem às aulas, traz na lapela,
nos solenes dias de blazer, as armas coroadas
de Portugal.
O Zé Alberto que é o melhor aluno, todos os dias
tenho que interromper o seu discurso sobre a vida
e os esforços para estar vivo, aqui, nesta difícil
cidade. Depois, as raparigas, Mavilde e
Belmira - lembro-me sempre da Benilde do 
Régio -, chegam, nunca faltam, são um confuso
poço de silêncio, sem dúvidas, sem questões,
por demais crédulas e indiferentes à
enunciada mentira dos filósofos.
Ainda há a Filomena, mas não é aluna inscrita,
apenas vem assistir aos meus longos monólogos
sobre o Fédon.
Por último o Zé Manel - o único com quem
gostaria de tomar um café depois da prisão
das aulas e saber que livros lê, que vinho
bebe, de que música gosta. (Interrompeu-me
a Susana perguntando se saber e conhecer
são coisas diferentes.)

Mas os meus alunos vêm quase todos embrulhados
em kispos, em coisas pardas e tudo sempre se
passa num tom neutro, pedagógico
até que chegue a hora de nos irmos: eu para
viver, eles para viverem e todos para morrer
e como na Apologia nenhum de nós saberá quem tem
a melhor sorte. Ninguém, excepto
o deus.

João Miguel Fernandes Jorge (n. 1943), in A Jornada de Cristóvão de Távora, Segunda Parte (1988). «João Miguel Fernandes Jorge tem uma já extensa obra, cerca de uma trintena de títulos, tão aliciante como evasiva, num ritmo de verso, entoação e imagens extremamente fluidos, com a constante surpresa de referências pessoais ou culturais, onde se justapõem títulos e traços históricos, alusões sibilinas de diverso sabor epocal, farrapos de fala viva; por vezes parece que esta música concreta verbalizada dá lugar à simples imagem flagrante, embora desgarrada, que tenderia por isso a eclipsar a metáfora, ou seja, tenderia à translação universal do significante; noutros momentos, com a rasura do sujeito, o senso de precariedade atinge a sua mais sóbria aridez (...)» (A. J. Saraiva, Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa). «A relação de alguma poesia de João Miguel Fernandes Jorge com temas, motivos e episódios históricos é um aspecto importante. (...) Esta relação com a história é, nas suas motivações e implicações, não muito diferente daquela que uma outra parte da obra do poeta mantém com a arte. Em ambos os casos estamos perante a tendência para descentrar a poesia, para a libertar de complexos expressivos, de absolutos poéticos, de intransitividades» (António Guerreiro, Expresso, 9 de Abril de 2005). 

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