sábado, 16 de agosto de 2014

POEMA


Eu não sabia então —
nem sei se mesmo hoje saberei —
que a poesia era para isto
falar das coisas miseráveis
— a memória do que é miúdo, o que é rasteiro —
o sono escombros que o mar devolve à terra.

Ou então lembrar meu Pai
suas mãos secas tisnadas do sol
sua vasta alma camponesa rosto de terra
coração de menino olhos ingénuos
um chapéu protegendo-lhe a cabeça
caminhando entre folhas de videira
suavemente falando aos que trabalhavam na colheita se acercassem de um outro campo mais acima
para colher sob sol braseiro
uvas que eu ia devorando
até do sumo doce fartar minha boca.

Ou lembrar meu avô
que conduzia mal
levando o carro pelo meio da estrada de província
a buzinar longamente em cada curva
afugentando galinhas ovelhas
crianças ranhosas
filhas do álcool.

Lembrá-lo agora como quem evoca um sabor cheiro da infância
não chegando para me humedecer os olhos
(não sou especialmente dado à comoção)
leva-me a um outro tempo:
um tempo de girassóis e de pão farto e doce
a encher-me a boca miúda
momentos coincidentes com o agora:
a guerra na Palestina as eleições em França
a notícia de um óbito no jornal do dia
a graça do pivô a fechar outro telejornal
ou tão-somente essa presença intensa
teu perfil recortado no ecrã dos meus olhos.

Tudo acontecendo ao mesmo tempo numa linha horizontal
em simultâneo como se de fora
como se fosse um outro
desconhecendo sempre
o lugar exacto a que pertenço.

Bernardo Pinto de Almeida (n. 1954), in Hotel Spleen (2003). «Partindo de um certo surrealismo (movimento a que, no seu romantismo tardio, Bernardo Pinto de Almeida está profundamente ligado), o lado datado de uma escrita foi-se lentamente apagando para dar lugar a uma poesia liberta de espartilhos doutrinais, que se pode ler sem pressupostos acentuados. Hoje, encontramos um poeta que vai além dos temas tradicionais (não se trata apenas do amor, da morte, da infância, do quotidiano) e que cria uma temática que tem o imenso mérito de não ser designável por qualquer palavra conhecida, sem no entanto convocar os deuses para preencher esse vazio. (…) Anotemos alguns traços essenciais: o uso das maiúsculas, mas a mesma palavra pode surgir com maiúsculas ou com minúsculas; a capacidade da repetição das palavras promovendo uma música própria: o uso metafísico das maiúsculas; o sentido intensificado das interrogações; o sentido do pormenor concreto, a capacidade de mudar de patamar (daí a utilização do travessão)» (Eduardo Prado Coelho, Público, 1 de Abril de 2006). «Estamos perante uma poesia da voz, onde há uma dimensão declamatória e, quase sempre, o endereço a um “tu”, seja o da invocação lírica, seja o da poesia como diálogo. (…) Esta poesia não renega o pathos romântico e a sua inspiração nocturna, com os seus motivos recorrentes da luz e das trevas. Ela vai, aliás, mais longe: aproxima-se de um panteísmo místico, fusional, até um estado de apoteose que Baudelaire identificou com o universo lírico. Nalguns momentos, ela permite-nos convocar o conceito rilkiano de “Weltinnenraum”, de espaço interior do mundo onde se abole a distinção entre sujeito e objecto. Estamos nos antípodas de uma poesia referencial» (António Guerreiro, Expresso, 18 de Março de 2006).  

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