sexta-feira, 26 de setembro de 2014

AS ARMAS SECRETAS


O centenário de Julio Cortázar (n. 1914 – m. 1984) tem sido celebrado em Portugal com a publicação de algumas das suas obras emblemáticas, entre as quais Final del juego/Final do Jogo (1956/2014), este Las Armas Secretas/As Armas Secretas (1959/2014) e Queremos tanto a Glenda/Gostamos tanto da Glenda (1980/2014). Devemos o feito à editora Cavalo de Ferro, que do mesmo autor já havia publicado a obra-prima Rayuela/O Jogo do Mundo (1963/2008), La vuelta al día en ochenta mundos/A Volta ao Dia em 80 Mundos (1967/2009) e Papéis Inesperados (2010). A um conto de As Armas Secretas foi o realizador Michelangelo Antonioni buscar inspiração para o filme Blow-Up/História de Um Fotógrafo (1966). Sobre o filme, escreveu Pedro Mexia que se inspirava vagamente num conto de Cortázar. Acrescentando, porém, o comentário crítico de Peter Brunette: «Blow-Up não nega a existência de um sentido mas suspeita que o «sentido» é uma construção social» (Cinemateca, Tinta-da-China, Dezembro de 2013). Ora, quem leia As Armas Secretas aperceber-se-á de quão eufemístico é o “vagamente” de Mexia. 
É verdade que o filme não reproduz a estrutura do conto em que se baseou, nem seria de esperar que o fizesse. Mas a sua essência foi captada e transfigurada à luz de uma linguagem diversa. De resto, o problema do “sentido” é uma das marcas fundamentais na obra de Cortázar (podemos até afirmar que se trata da questão mais presente na prosa sul-americana). Cortázar, que apesar de ter nascido na Bélgica e de ter passado grande parte da sua vida em Paris, nunca se desfez das raízes argentinas. Tal como Jorge Luis Borges, cultivou sobretudo o conto. E é de contos que estamos a falar quando nos referimos à colectânea As Armas Secretas, cinco contos de extensão diversa mas percorridos por esse problema do sentido que traduz uma extraordinária capacidade de questionar o real e a sua relação com a linguagem. 
Tomemos de exemplo as extraordinárias primeiras linhas do tal conto que inspirou Antonioni, As babas do diabo: «Nunca se saberá qual a melhor forma de narrar isto, se na primeira ou na segunda pessoa, usando a terceira pessoa do plural ou inventando, continuamente, formas que não servem para nada. Se se pudesse dizer: eu viram nascer a lua; ou: nós dói-me o fundo dos olhos; e, acima de tudo: tu a mulher loira eram as nuvens que continuam a correr perante os meus teus seus nossos vossos seus rostos. Que diabo» (p. 53). Torna-se claro ser o problema do sentido, entendido aqui como capacidade de transcrever ou representar a realidade fazendo uso de uma linguagem que não a traia, o cerne da situação mencionada. O mesmo valerá por cada um dos contos coligidos nesta recolha. Inevitável pensar em Wittgenstein, nos esforços colocados numa investigação sobre os fundamentos da matemática, da lógica e, por consequência, da relação que o pensamento estabelece com a realidade e na forma como a organiza em linguagens cujos limites a tornam frequentemente paradoxal e até ambígua. 
Especialmente revelador é o extraordinário conto O perseguidor, sobre um músico de jazz e a forma como um crítico, seu amigo, o olha, percepciona, interpreta e biografa. Johnny, o músico, de algum modo encaixa no estereótipo do jazzman alucinado, perturbado pelo consumo de drogas, alheio às convenções, distanciado de uma percepção metódica do tempo e do espaço. Johnny é música e improvisação em estado bruto, naquele estado em que uma linguagem dita factual se vê circunscrita pela abstracção do sujeito: «Depois de amanhã é o dia a seguir ao de amanhã e amanhã é muito depois de hoje» (p. 71). Ou, mais adiante: «Como se pode pensar um quarto de hora num minuto e meio?» (p. 80) O problema do crítico e biógrafo de Johnny reside em tornar compreensível perante o público esta desconstrução da realidade operada por um sujeito cujos “padrões” de organização do mundo não jogam com os padrões da maioria. Daí a conclusão: «Johnny não se movimenta num mundo de abstracções como nós; por isso a sua música, essa admirável música que ouvi esta noite, não tem nada de abstracto. Mas só ele pode contar o que colheu enquanto tocava e, provavelmente, já estará noutra, perdendo-se numa nova conjectura ou numa nova suspeita» (p. 92). Isto é, como pode alguém cuja função é tornar compreensível uma realidade ser fiel à mesma quando esta escapa à limitada capacidade humana de a interpretar, organizar, reproduzir? 
Johnny podia ser Charlie Parker ou John Coltrane ou qualquer outro desses músicos extraordinários que eram incapazes de tocar duas vezes seguidas, da mesma maneira, o mesmo solo. As suas realidades eram uma abstracção permanente do real. A questão que aqui se coloca é, pois, sobre as possibilidades de interpretação da realidade, questão essa que nos transporta para os territórios onde a normalidade e a loucura embatem com estrondo e provocam mais ou menos estragos. Quando transposto para o espaço lógico, o mundo factual perde grande parte da sua dimensão realista. Toda a arte resulta desta relação problemática, sendo por isso legítimo considerar que os contos de Julio Cortázar problematizam a sua própria natureza e nos impelem a pensar os limites da linguagem e a capacidade de estruturar a realidade em formas onde a lógica do falso e do verdadeiro não determine o gozo da transfiguração. A fotografia, enquanto representação supostamente fidedigna da realidade, é talvez a forma de arte que mais radicaliza esta discussão. Mas sobre isso já Michelangelo Antonioni disse o que havia a dizer.

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