O centenário de Julio Cortázar (n. 1914 – m. 1984) tem
sido celebrado em Portugal com a publicação de algumas das suas obras
emblemáticas, entre as quais Final del juego/Final do Jogo (1956/2014), este Las
Armas Secretas/As Armas Secretas (1959/2014) e Queremos tanto a Glenda/Gostamos
tanto da Glenda (1980/2014). Devemos o feito à editora Cavalo de Ferro, que do
mesmo autor já havia publicado a obra-prima Rayuela/O Jogo do Mundo (1963/2008),
La vuelta al día en ochenta mundos/A Volta ao Dia em 80 Mundos (1967/2009) e
Papéis Inesperados (2010). A um conto de As Armas Secretas foi o realizador
Michelangelo Antonioni buscar inspiração para o filme Blow-Up/História de Um
Fotógrafo (1966). Sobre o filme, escreveu Pedro Mexia que se inspirava
vagamente num conto de Cortázar. Acrescentando, porém, o comentário crítico de
Peter Brunette: «Blow-Up não nega a existência de um sentido mas suspeita que o
«sentido» é uma construção social» (Cinemateca, Tinta-da-China, Dezembro de
2013). Ora, quem leia As Armas Secretas aperceber-se-á de quão eufemístico é o “vagamente”
de Mexia.
É verdade que o filme não reproduz a estrutura do
conto em que se baseou, nem seria de esperar que o fizesse. Mas a sua essência foi captada e
transfigurada à luz de uma linguagem diversa. De resto, o problema do “sentido”
é uma das marcas fundamentais na obra de Cortázar (podemos até afirmar que se
trata da questão mais presente na prosa sul-americana). Cortázar, que apesar de
ter nascido na Bélgica e de ter passado grande parte da sua vida em Paris,
nunca se desfez das raízes argentinas. Tal como Jorge Luis Borges, cultivou
sobretudo o conto. E é de contos que estamos a falar quando nos referimos à
colectânea As Armas Secretas, cinco contos de extensão diversa mas percorridos por
esse problema do sentido que traduz uma extraordinária capacidade de questionar
o real e a sua relação com a linguagem.
Tomemos de exemplo as extraordinárias
primeiras linhas do tal conto que inspirou Antonioni, As babas do
diabo: «Nunca se saberá qual a melhor forma de narrar isto, se na primeira ou
na segunda pessoa, usando a terceira pessoa do plural ou inventando,
continuamente, formas que não servem para nada. Se se pudesse dizer: eu viram
nascer a lua; ou: nós dói-me o fundo dos olhos; e, acima de tudo: tu a mulher
loira eram as nuvens que continuam a correr perante os meus teus seus nossos
vossos seus rostos. Que diabo» (p. 53). Torna-se claro ser o problema do
sentido, entendido aqui como capacidade de transcrever ou representar a
realidade fazendo uso de uma linguagem que não a traia, o cerne da situação mencionada. O mesmo valerá por cada um dos contos coligidos nesta recolha. Inevitável pensar em
Wittgenstein, nos esforços colocados numa investigação sobre os fundamentos da
matemática, da lógica e, por consequência, da relação que o pensamento
estabelece com a realidade e na forma como a organiza em linguagens cujos
limites a tornam frequentemente paradoxal e até ambígua.
Especialmente
revelador é o extraordinário conto O perseguidor, sobre um músico de jazz e a
forma como um crítico, seu amigo, o olha, percepciona, interpreta e biografa. Johnny,
o músico, de algum modo encaixa no estereótipo do jazzman alucinado, perturbado
pelo consumo de drogas, alheio às convenções, distanciado de uma percepção metódica
do tempo e do espaço. Johnny é música e improvisação em estado bruto, naquele
estado em que uma linguagem dita factual se vê circunscrita pela abstracção do
sujeito: «Depois de amanhã é o dia a seguir ao de amanhã e amanhã é muito
depois de hoje» (p. 71). Ou, mais adiante: «Como se pode pensar um quarto de
hora num minuto e meio?» (p. 80) O problema do crítico e biógrafo de Johnny
reside em tornar compreensível perante o público esta desconstrução da
realidade operada por um sujeito cujos “padrões” de organização do mundo não jogam
com os padrões da maioria. Daí a conclusão: «Johnny não se movimenta num mundo
de abstracções como nós; por isso a sua música, essa admirável música que ouvi
esta noite, não tem nada de abstracto. Mas só ele pode contar o que colheu
enquanto tocava e, provavelmente, já estará noutra, perdendo-se numa nova
conjectura ou numa nova suspeita» (p. 92). Isto é, como pode alguém cuja função
é tornar compreensível uma realidade ser fiel à mesma quando esta escapa à
limitada capacidade humana de a interpretar, organizar, reproduzir?
Johnny
podia ser Charlie Parker ou John Coltrane ou qualquer outro desses músicos
extraordinários que eram incapazes de tocar duas vezes seguidas, da mesma
maneira, o mesmo solo. As suas realidades eram uma abstracção permanente do real. A questão que aqui se coloca é, pois, sobre as
possibilidades de interpretação da realidade, questão essa que nos transporta
para os territórios onde a normalidade e a loucura embatem com estrondo e
provocam mais ou menos estragos. Quando transposto para o espaço lógico, o
mundo factual perde grande parte da sua dimensão realista. Toda a arte resulta
desta relação problemática, sendo por isso legítimo considerar que os contos de
Julio Cortázar problematizam a sua própria natureza e nos impelem a pensar os
limites da linguagem e a capacidade de estruturar a realidade em formas onde a
lógica do falso e do verdadeiro não determine o gozo da transfiguração. A
fotografia, enquanto representação supostamente fidedigna da realidade, é
talvez a forma de arte que mais radicaliza esta discussão. Mas sobre isso já Michelangelo
Antonioni disse o que havia a dizer.
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