A tarde aglomera-se entre quatro paredes
há duas portas e mais duas janelas
e as folhas aguçadas por repentes de brisa
passam lá fora por cima dos telhados.
A vontade tenaz imersa no desejo
de conhecer o mais que nos impede
a condição de sermos minoria
empurra-nos as costas
segura-nos à liça.
Dispõe-se o corpo
conhece-se por dentro
e sente-se a mucosa,
o torpor da glândula
rumoreja na vala.
A cara surge ao perto
a interdita forma desfaz a compostura
e o pânico apodera-se da garganta cerrada.
É fácil agarrar a experiência
recuar o letargo que nos mantém inertes?
À crua luz do desejo citado
a prostituta despe-se.
Na luz que irradia do fecundo icebergue
ténue perpassa a fria radiante
ríspida sensação do cheiro forte da laca
inclina a cabeça da hora.
No estéril quadrilátero
incapaz por uns tempos de mostrar mais
do que esgarçados restos
ouvem-se frases descer na ampulheta.
Nas dunas a infâmia acomete
uma nuvem de pó obriga-me ao segredo
da pupila na pálpebra.
O amor desfaz na cabeleira
a trama que imagina factos não confirmados.
A presença da mãe paralisa o contorno
o desejo não efectua a partenogénese,
a maré não avança
jungida na barreira dos traços paralelos
que vedam a decrépita face
à jovem discrepância da torrente incontida.
A inundação represa nos abrigos
esmorece nos charcos em que se continua.
O desejo é mercúrio
a escorrer no termómetro.
A febre desta tarde arrefece em sezões
que me deixam nas plamas um nevoeiro ruim.
Fátima Maldonado (n. 1941), in Os Presságios (1983). «O primeiro sinal de amplitude recolhido neste poeta (dos que mais admiro) é lexical. No campo dos nomes, dos adjectivos, dos verbos, um matagal de palavras recuperadas aos mundos submersos da língua triunfa como selva pujante. Palavras comuns surgem a par de descobertas profundas que parecem emergir de diccionários secretos, onde a alma retira do pó esquecidos tecidos de letras. Os poemas parecem tornar-se anjos da guarda das almas de vocábulos que, de repente, esvoaçam perante nós, de braço dado com outros vocábulos mais banais que nada se surpreendem com a inesperada companhia. (...) É um dos olhares mais seguros e mais desapiedados da actual poesia portuguesa. (...) A opulência verbal esconde o mais conciso sarcasmo e a mais conceptista das descrenças. Contempla ruínas do centro do incêndio da beleza que persegue com o único talismã que resta a alguns afortunados da derrota, a poesia. (...) Custa ler esta poesia se não se lhe apanha o seu âmago de dor, cercado de prazeres tecidos na sensualidade da língua. Pois não são as medidas mais convencionais que a conduzem, antes esse prazer verso a verso inventado, entregue aos ritmos de uma exterioridade que não está muito interessado no convénio da habitualidade» (Joaquim Manuel Magalhães, Rima Pobre).
Sem comentários:
Enviar um comentário