segunda-feira, 22 de setembro de 2014

JOE


Fala-se amiúde de uma América pobre, de rios poluídos e com ruas repletas de gente sem casa, a América dos desempregados, das empresas falidas, das cidades fantasma, uma América violenta, sem rei nem roque, algures perdida entre um sonho desfeito pela realidade e uma realidade desfeita pelo desencanto, a América da sobrevivência, estreitos caminhos para o crime, esquinas de maldade, fantasmas que cambaleiam, corpos que se arrastam, a América dos biscates, da exploração de mão-de-obra barata, das prostitutas, das milícias, uma América cujos traumas se reflectem em famílias disfuncionais, espaços desorganizados, uma América desarrumada. O bas-fond desse Novo Mundo entretanto envelhecido é-nos imaginável, mas raramente temos dele uma transfiguração realista. Aos livros e ao cinema vamos buscar histórias que o representam, com maior ou menor proximidade e autenticidade. Difícil é senti-lo como sentimos as nossas próprias misérias, ou seja, sem censura nem comiseração, elaborando, tanto quanto possível, o entendimento de algo que nos parece sempre incompreensível. Joe é uma notável recriação deste mundo umbroso, e isso deve-se à capacidade de David Gordon Green para filmar sem distracções nem contemplações.



 

A personagem de Nicolas Cage, que oferece o título ao filme, podia ser a da canção que Jimi Hendrix imortalizou: um indivíduo em estado de sítio emocional, contendo uma fúria, uma raiva, uma violência que pode a qualquer instante espoletar. O encontro com o jovem Gary, vítima de violência doméstica, é a faísca que ateará a chama. Tye Sheridan interpreta este jovem, o mesmo Tye Sheridan que já nos tinha surpreendido em The Tree of Life, de Terrence Malick, e surge como contraponto ideal ao musculado e tatuado Cage. Em Gary encontramos o autodomínio que Joe se esforça por conquistar. De Gary esperamos que se revolte, de Joe esperamos que consiga conter-se. A fragilidade de um é a virilidade do outro. Dão forma a uma relação extraordinariamente complexa onde nenhuma lei, nenhuma regra, nenhuma certeza podemos asseverar sobre as vantagens do autodomínio e do autoconhecimento. E entre ambos temos o pai de Gary, soberba “interpretação” de um tal Gary Poulter. As aspas têm a sua razão de ser. Gary Poulter era um sem-abrigo na vida real recrutado para o filme por uma equipa de castings. Faleceu pouco depois das filmagens terem terminado, não tendo oportunidade de apreciar na tela o seu excelente, perturbador e comovente desempenho. Presa do álcool, esta perversa personagem actua impelido por um vício ao qual não consegue resistir. Mata por uma garrafa de vinho, mas beija a sua vítima. Odiamo-lo, mas somos incapazes de o desprezar. Talvez ele seja a árvore velha que importa cortar para que outras árvores floresçam. Esta bela metáfora que o filme explora exaustivamente tem na sua origem uma perspectiva discutível sobre aquilo a que chamamos natureza humana. As cenas filmadas no meio da floresta, com um grupo de trabalhadores a envenenarem árvores velhas para que possam vir a ser abatidas, permitindo assim a plantação de novas árvores, são especialmente reveladoras. Podemos ter da humanidade a mesma percepção que temos de uma floresta? Talvez estejamos a extrapolar os propósitos do filme aludindo aos problemas que o seu visionamento nos coloca. Na realidade, são problemas nossos que o filme apenas desperta. Não são necessariamente questões inerentes a uma narrativa onde o conceito de família é o centro a partir do qual tudo se desenvolve. Entre posturas reverenciais e um total desrespeito pelas convenções, estas personagens encontram-se algures entre o banco da vítima e o banco do réu. Veja-se, por exemplo, como Joe é implacável para com os homens que com ele trabalham, mas não consegue respeitar as figuras da autoridade e da lei. Veja-se como o jovem Gary se perde entre a vontade de matar o pai e a incapacidade de lhe fazer frente. Veja-se como o pai de Gary termina com uma vida que, afinal, até para ele já não era suportável. Não se trata de contradições, as pessoas são assim mesmo. A sua coerência reside na forma como abrigam estes conflitos, estas disputas íntimas, este desassossego.

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