Numa breve nota de imprensa, Coração Quase Branco
(Edições 50kg, Julho de 2013), de António Cabrita (n. 1959), aparece apresentado
como breve romance sobre um misterioso crime. Não serei eu a retomar a
discussão sobre a natureza do romance. Ainda há pouco deixei aqui nota de
leitura sobre Apenas Uma Narrativa (1942), romance que assim era porque o seu autor
não o pretendia de outra forma. O que me parece errado, até contraproducente, é
conferir ao texto de Cabrita um tom policial. Tendo na origem a morte de
Ricarte-Dácio de Sousa, o texto evolui para interrogações que transcendem
qualquer tipo de especulação sobre essa morte. De resto, essa evolução
parece-me até denotar uma recusa, ou uma resistência, a tal especulação.
Mas
quem foi Ricarte-Dácio de Sousa? Alfarrabista próximo dos grupos surrealistas
lisboetas, não aparece mencionado nas antologias nem nas enciclopédias do
movimento. Tornou-se, por um lado, tabu, por outro lado, numa espécie de mito
indecifrável. A morte de Ricarte-Dácio parece esgotar o tema Ricarte-Dácio.
Porquê? Porque se suicidou depois de ter disparado fatalmente sobre a mulher, o
filho e o gato. Suicídio precedido de crime tão horrendo afecta até as mentes
mais impúdicas, que rapidamente se encarregaram de não fazer as questões que
António Cabrita agora faz: «Também eu como tu, no rodapé da miséria,
desenganado, triste como as neves de Maio. E se eu tivesse uma arma?» (p. 9)
Acautelemos, desde já, interpretações abusivas. Não se trata de
desculpabilização, até porque a culpa tem muitas faces e quase sempre morre
solteira (em certas matérias o povo é bom conselheiro). Trata-se, antes, de um
esforço de compreensão, um esforço de compreensão porventura mais autocentrado
do que possa parecer. A questão não é quem matou Ricarte-Dácio, mas por que não
se mata António Cabrita. Colocada assim a questão escusamo-nos de explicar o
erro em que incorreríamos se partíssemos para a leitura desta correspondência
póstuma como se estivéssemos perante uma investigação criminal. Na realidade, o
crime aqui investigado é apenas aquele que está por suceder. E isso desassossega-nos,
inquieta-nos, pois o espanto não é que perante o infortúnio uns se matem, mas
sim que outros permaneçam vivos.
Sobre Dácio oferecem-se hipóteses tais como «um
sentimento de impotência», «negócios e amigos ruinosos», «trombose da tua
mulher bretã», «o dinheiro gasto em jogo da sorte», «o peso das dívidas», «o
filho tardio», «o vinho»… Enfim, razões para a morte nunca há apenas uma e todas elas são vulgares. Também todas
elas se conjugam e nenhuma serve de explicação. Mas sobre os que ficam algo se impõe
na consciência: «O que mais me chocou é que nenhum deles, dos teus amigos de
sempre, ousou duvidar. Receberam o teu crime como a abominação que aparentava,
envergonhados por teres virado aos canos do sniper de Breton para o seio
familiar. Algo tão grave como descobrir-se que Cristo afinal defecava» (p. 9).
Mais do que ajuste de contas, a constatação comove. Aliás, todo este texto,
quer na sua revolta expressiva, quer na sabotagem que faz da tragédia com
elementos cómicos e memórias de situações caricatas, quer no que denota de
exercício ou de exame de consciência é comovente. Comovente na forma como exige
a dúvida perante o que aparenta certeza, comovente na capacidade de se
interrogar sobre as razões do desespero, comovente também por nele a falência
dos projectos não servir de justificação, pois o que aqui está em causa é uma
necessidade, uma urgência, até uma missão que tem no esforço de compreensão da
existência o seu motivo e o seu fim.
Ao incluir no texto afirmações
factuais, como, por exemplo, as do alfarrabista Luís Gomes aquando da morte deLuiz Pacheco, António Cabrita transporta a sua missiva para um lugar que pouco
tem que ver com os domínios da ficção. As histórias que se contam no interior
deste exame acabam por conferir à prosa um incontestável interesse
autobiográfico. Já de Moçambique, falando de si e expondo a sua situação, o
autor expõe-se: «A mim, tão cobarde e falido de esperança e de qualidades,
engolindo em seco a áspera escama do escuro, só resta a pergunta: e se tivesse
uma espingarda neste momento e caísse na tentação? Detestaria que depois
falassem nos abismos da mente e nos infernos de cada um» (p. 15). De que falar,
então, senão daquilo que nos desvia da tentação? Buganvílias? A mulher e as
crianças que se ama? O homem sem dedos cuja agilidade assombra quem tem as mãos
completas? Quem tem as mãos completas?
O grande mistério sugerido por Coração
Quase Branco é o da resistência, o dos modos com que cada ser humano se
reinventa e inventa para a vida uma certa suportabilidade, pois precária é a
existência de todo aquele que nasce à morte. Nenhuma tragédia, diria, há neste
ritual, haverá porventura o drama da reinvenção. Cómico é que perante a certeza
da morte haja quem a interrogue como se valesse a pena.
2 comentários:
thanks, camarada, um abraço
Aparentemente toda essa tragédia aconteceu porque Dácio, outrora rico, mas gastador exorbitante (contou que uma vez fora de avião tomar o pequeno-almoço a Paris), estava completamente falido.
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