Hão-de ser sempre misteriosas as razões que lançam no esquecimento
poetas extraordinários, oferecendo a outros a glória da reedição, da recolha,
da tese, da perpetuidade (tanto quanto possível na redoma exígua dos
leitores interessados). O século XX português já tem os seus ícones, chamem-se
eles Pessoa (primeira metade) ou Herberto (segunda metade). Outros há que vão
resistindo à custa de esforços vários. Sophia e Sena, Eugénio, Ruy Belo,
Cesariny, O’Neill. O problema não está em estes serem lembrados, está em
outros, igualmente singulares e desafiantes, serem esquecidos. Ruy Cinatti
(1915-1986) é, na minha modesta opinião, um dos poetas portugueses do século XX
mais incompreensível e estupidamente ignorados, pelo que a publicação de Corpo
Santo (Averno, Julho de 2014) constitui, por si só, um dos momentos altos do
ano corrente no que a edição de poesia diz respeito.
Podemos distrair os
leitores com traquitanas, com máquinas promocionais, com anúncios estrondosos
de novidade onde apenas se vislumbra jogo de anca, mas não podemos, não
devemos, ser cúmplices para com a mexeriquice que ameaça deixar na penumbra um
poeta deste calibre. Mais estranho se torna o esquecimento quando Cinatti tinha
tudo para ser um entre os maiores, desde uma biografia rica a uma obra que lhe
fez justiça — com os devidos encómios críticos de gente credível, de Ruy Belo a
Joaquim Manuel Magalhães. Sobre a vida, mais que não fosse seria expectável que
interessasse o seu incorrigível nomadismo. Até por ser raro entre nós. Se
Camões se aventurou em altos mares e Pessoa foi um nómada intelectual por
excelência, não muitos terão saído de onde sempre estiveram, dentro de si
próprios, ao “encontro inesperado do diverso”.
O primeiro livro, Nós Não Somos
Deste Mundo, saiu em 1941 (dedicado a Hermínia Cinatti, mãe com raízes
toscanas, falecida quando o poeta tinha apenas dois anos). Nascido em Londres,
estudou em Oxford, partiu para Timor, foi metereologista, contrabandista, andou
por Goa, Norte de África, Paquistão, para vir “apodrecer” em Lisboa já no final
da década de 1960. Manhã Imensa (Março de 1984) foi o último livro publicado em
vida, sendo nele notável uma vivência espiritual próxima de certa militância
poética de tipo pasoliniana: «Comunismo — cristianismo: oposição. O poeta opta
pelo cristianismo e envolve nesta opção o próprio comunismo, não sem ter
deixado de apelar subtilmente pela ajuda de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro»
(Manhã Submersa, Assírio & Alvim, 2.ª edição, Abril de 1997). Não nos
espanta, pois, a Homenagem a Pasolini incluída em Corpo Santo: «Ó Pasolini, tu
mexeste-me de verdade e eu deixo ficar tudo escrito. / Teu o meu Amor por Jesus
Cristo!» (p. 78)
Em nenhum outro autor como Pasolini a conjugação do
cristianismo com o comunismo foi levada tão a sério, sendo certo que, como
dizia Jean Duflot, «o único partido que Pasolini escolheu foi o da
ressacralização do homem, do homem cá de baixo, nascido da natureza e da mãe, e
cuja assunção pode e deve dispensar toda a revelação» (in As Últimas Palavras
de um Ímpio, Distri Editora, 1985). O mesmo processo de ressacralização parece
operar-se na poesia de Ruy Cinatti, sendo por isso muito pertinente a escolha
do título para esta “antologia de poemas volantes”. Escusada era a explicação
de Manuel de Freitas sobre o título quando é ao próprio poeta que vamos buscar
esse entendimento, nomeadamente em versos de Depoimento — «Em cada baiuca em
que entrares aí é a Casa de Deus… / mesmo que só lá estejam miseráveis
publicanos como eu… / e então… que festa grande… festa redonda… o Mundo…
encimado pela Cruz e na Mão de Jesus… o Magnífico… / a dar esmola aos pobres
pelas mãos de um pecador…» (p. 37) — e nesse magnífico poema da página 52:
FADO
A minha atracção pelos marginais
acorda-se com o meu signo, o dos ambíguos maravilhosos
Peixes.
Um aprofunda-se, outro, à superfície
das águas pestaneja
meio adormecido e sonhador…
e sendo o amor ubíquo eu sigo os dois
conforme a total necessidade e as demais
oscilações contrárias no coração dos homens,
não esquecendo a atracção que os marginais por mim não
escondem…
12.3.77
Convém esclarecer a origem dos poemas coligidos, de forma
e temática diversas, embora singularmente homogéneos no tom com que
perspectivam a realidade: «Ruy Cinatti distribuiu, nas décadas de 70 e 80, centenas
de poemas policopiados. (…) Os poemas policopiados em folhas volantes que Ruy
Cinatti tantas vezes fez circular pelos bares do Cais do Sodré ou pelos cafés
do Chiado chegaram também, naturalmente, a vários amigos seus. E daí resultou,
em 1981, uma antologia anónima mas consentida pelo autor: 56 Poemas (Lisboa, A
Regra do Jogo)» (Manuel de Freitas, Nota Introdutória, pp. 5-6). Na realidade, os
56 Poemas, reeditados pela Relógio D’Água em 1992, foram agrupados por João
Miguel Fernandes Jorge. Tanto nessa como nesta antologia encontramos alguns dos melhores momentos que a poesia de Cinatti conheceu, quer
quando adopta formas tradicionais, quer quando liberta o verso de métricas rígidas.
A actualidade política, olhada com desencanto, é satirizada com um discurso tão
verrinoso quão descrente das estruturas do poder. Mas o que mais impressiona é
a preponderância dos símbolos numa poesia aparentemente circunstancial, num diálogo
persistente com a tradição e com a cultura que questiona o presente e o
deflagra com situações onde fica claro o definhamento dos homens. Dos homens ou da espiritualidade. Por vezes, estes poemas interpelam-nos acerca da perda do assombro e da ausência de espiritualidade. São uma espécie de lamento místico mas com os pés na terra, essa é a sua maior força. Ou então são a súplica do nómada atracado, comovente apelo, inigualável dor:
ANTI-ODE MARÍTIMA
À memória de Álvaro de Campos
Ó barcas de velas altas, ó horizontes,
carreiras de navegação para todos os portos!
Ó brumas matutinas quando a escuna
se espuma sobre baixios perigosos!
Ó ilhas, edénicas fortunas
de aventureiros fortes, audaciosos!
Ouçam o meu apelo, ó sirenes que ecoam
nos meus ouvidos os mais fundos avisos!
Eu sou o que não sou, sendo improviso
como um cego ao subir passeios,
mas possuo, ó fumo dos navios,
da minha condição, visão informe!
Ouvide a minha súplica, atendei-me,
levai-me convosco à aventura!
Que eu ouça o grito das gaivotas
e o marulho nocturno: vagas múltiplas!
Meu coração tropeça. Tenho frio
e calor d’encontro a vós, senhores
dos mares, dos poentes espantosos:
derrame de luzes e de vozes!...
Sou tão vosso como dos navios
aos altos mastros içadas as adriças
dos sonhos que vos habitam dia e noite,
com sereias, polvos, cachalotes!
Tenho de mim certezas, apenas falta
vosso convite alegre, insinuante
meneio de cabeça, olhos distantes,
mas tão junto a mim como um afago!
Ide, parti, levai minh’alma
já que o corpo espera, espera, espera!...
30.6.83
Ruy Cinatti, in Corpo Santo, org. Manuel de Freitas,
Averno, Julho de 2014.
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