Quando morreu, John Fante (1909-1983) deixou publicados
pouco mais que meia dúzia de livros. A primeira tradução para português surgiu
em 2007, numa publicação da Teorema. The Brotherhood of the Grape/A Confraria
do Vinho (1977) não faz parte, porém, da saga mais conhecida do escritor
norte-americano: The Bandini Quartet. Esta é composta pelos livros Wait Until
Spring, Bandini/A Primavera há-de chegar, Bandini (1938/2010) e Ask the
Dust/Pergunta ao Pó (1939/2009), entretanto difundidos no mercado português
pelas Edições Ahab. Ask the Dust, que foi objecto de uma adaptação cinematográfica
algo grosseira assinada por Robert Towne, é considerado por muitos a
obra-prima de Fante. Os outros títulos da tetralogia involuntária são Dreams
from Bunker Hill/Sonhos de Bunker Hill (1982/2014) e o póstumo The Road to Los
Angeles/Estrada para Los Angeles (1985/2013), ambos recentemente publicados em
Portugal pela Alfaguara com tradução de Vasco Gato. Se quisermos ser
minuciosos, devemos lembrar que o primeiro destes romances a ser escrito foi o
último a ser publicado: The Road to Los Angeles (1933). A ordem cronológica do
The Bandini Quartet será então a seguinte: Estrada para Los Angeles, A
Primavera Há-de Chegar, Bandini, Pergunta ao Pó e Sonhos de Bunker Hill, tendo
o último sido ditado por Fante a Joyce, sua mulher, numa fase em que o escritor
se encontrava bastante debilitado devido à diabetes.
O facto de Charles
Bukowski considerar John Fante o seu escritor americano preferido, tal como
este considerava Sherwood Anderson, contribuiu para um certo culto em torno de
um escritor pouco mais do que ignorado em vida. De origens humilíssimas, Fante
sobreviveu, enquanto escritor, numa Hollywood que parecia detestar e com a qual
não se identificava. Um dos seus argumentos mais bem-sucedidos foi Walk on the
Wild Side/Restos de Um Pecado (1962), baseado num romance de Nelson Algren e
levado à tela por Edward Dmytryk. Do início da sua carreira como argumentista
nos dá conta em Sonhos de Bunker Hill, romance, como todos os outros, altamente
autobiográfico e, de certo modo, confessional. Estas dimensões não esgotam,
porém, as capacidades narrativas de Fante. Há nele um lado violentamente
autocrítico, por vezes cómico e caricato, que resvala amiúde para situações
comoventes. Gera-se quase um processo de identificação com as
fraquezas humanas do alter-ego Arturo Bandini, um jovem do Colorado, de raízes
italianas, que encontra na actividade literária um sonho libertador da
austeridade imposta pela família católica, pobre, severa.
A identificação da
escrita com os caminhos da libertação não é ingénua, permite a Fante como que
desmistificar papéis sociais num universo onde a actividade literária é
entendida de um modo muito diferente daquele que conhecemos por cá. Por outro
lado, as ambições e consequentes frustrações, os receios e uma certa
inadaptação social, os problemas da exclusão, conflitos classistas e
hierarquias socias rígidas, uma timidez como que herdada culturalmente e
desafiadora, perpassam as aventuras de Bandini com uma naturalidade que pode parecer superficial. Nada há de superficial nestes retratos crus,
fiéis à realidade, de uma América dividida por castas, com seus nichos de miséria
e sonhos de sucesso, a América das oportunidades que atira para a valeta comum
do malogro os inadaptados, os insurrectos, os autênticos, ou seja, todos
aqueles que não estejam dispostos a jogar o jogo do carreirismo. Neste sentido,
nada há de ingénuo na paixão de Bandini pela senhoria muito mais velha, na
recusa de associar o seu nome a um argumento medíocre,
na confissão de uma certa cobardia nos assuntos do amor, na frustração sentida
perante o salário sem produtividade que o justificasse, no desprezo da
fama dos outros ao mesmo tempo que se encena uma putativa fama pessoal.
A
questão é sempre a de uma insegurança que impele a personagem para a solidão,
para o isolamento, para uma extrema dificuldade em manter e alimentar relações
sociais, ao mesmo tempo que busca afirmar-se e não se sente propriedade do destino. Por isso nos comove o começo da saga, quando num breve fakshback John Fante recorda a origem de tudo no princípio do fim:
Fui à biblioteca. Passei os olhos pelas revistas, pelas
fotografias que traziam lá dentro. Um dia aproximei-me das estantes e tirei um
livro. Era o Winesburg, Ohio. Sentei-me numa mesa de mogno comprida e comecei a
ler. De repente, o meu mundo ficou virado do avesso. O céu desabou. O livro
prendeu-me. Fui surpreendido pelas lágrimas. O coração batia acelerado. Li até
me arderem os olhos. Levei o livro para casa. Li outro do Anderson. Eu lia e
lia e sentia-me desolado e sozinho e apaixonado por um livro, vários livros,
até que a coisa surgiu naturalmente, e sentei-me com um lápis e um bloco
grosso, e tentei escrever, até que senti que não poderia continuar porque as
palavras não apareciam tal como apareciam no Anderson, surgiam apenas como
gotas de sangue vindas do meu coração.
Mais coisa menos coisa, anos mais tarde Bukowski dirá o
mesmo de John Fante. Presume-se que seja também esta a história da literatura,
muito mais do que aquela que ensinam nas escolas e rotulam em pastas e dossiers ao gosto sóbrio, cinzento e chato das academias. Não sei quantos prémios
estes autores terão amealhado em vida, mas estou certo de que o testemunho das
suas vidas é hoje um prémio para os seus leitores.
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