segunda-feira, 20 de outubro de 2014

SONHOS DE BUNKER HILL


   Quando morreu, John Fante (1909-1983) deixou publicados pouco mais que meia dúzia de livros. A primeira tradução para português surgiu em 2007, numa publicação da Teorema. The Brotherhood of the Grape/A Confraria do Vinho (1977) não faz parte, porém, da saga mais conhecida do escritor norte-americano: The Bandini Quartet. Esta é composta pelos livros Wait Until Spring, Bandini/A Primavera há-de chegar, Bandini (1938/2010) e Ask the Dust/Pergunta ao Pó (1939/2009), entretanto difundidos no mercado português pelas Edições Ahab. Ask the Dust, que foi objecto de uma adaptação cinematográfica algo grosseira assinada por Robert Towne, é considerado por muitos a obra-prima de Fante. Os outros títulos da tetralogia involuntária são Dreams from Bunker Hill/Sonhos de Bunker Hill (1982/2014) e o póstumo The Road to Los Angeles/Estrada para Los Angeles (1985/2013), ambos recentemente publicados em Portugal pela Alfaguara com tradução de Vasco Gato. Se quisermos ser minuciosos, devemos lembrar que o primeiro destes romances a ser escrito foi o último a ser publicado: The Road to Los Angeles (1933). A ordem cronológica do The Bandini Quartet será então a seguinte: Estrada para Los Angeles, A Primavera Há-de Chegar, Bandini, Pergunta ao Pó e Sonhos de Bunker Hill, tendo o último sido ditado por Fante a Joyce, sua mulher, numa fase em que o escritor se encontrava bastante debilitado devido à diabetes. 
   O facto de Charles Bukowski considerar John Fante o seu escritor americano preferido, tal como este considerava Sherwood Anderson, contribuiu para um certo culto em torno de um escritor pouco mais do que ignorado em vida. De origens humilíssimas, Fante sobreviveu, enquanto escritor, numa Hollywood que parecia detestar e com a qual não se identificava. Um dos seus argumentos mais bem-sucedidos foi Walk on the Wild Side/Restos de Um Pecado (1962), baseado num romance de Nelson Algren e levado à tela por Edward Dmytryk. Do início da sua carreira como argumentista nos dá conta em Sonhos de Bunker Hill, romance, como todos os outros, altamente autobiográfico e, de certo modo, confessional. Estas dimensões não esgotam, porém, as capacidades narrativas de Fante. Há nele um lado violentamente autocrítico, por vezes cómico e caricato, que resvala amiúde para situações comoventes. Gera-se quase um processo de identificação com as fraquezas humanas do alter-ego Arturo Bandini, um jovem do Colorado, de raízes italianas, que encontra na actividade literária um sonho libertador da austeridade imposta pela família católica, pobre, severa.
   A identificação da escrita com os caminhos da libertação não é ingénua, permite a Fante como que desmistificar papéis sociais num universo onde a actividade literária é entendida de um modo muito diferente daquele que conhecemos por cá. Por outro lado, as ambições e consequentes frustrações, os receios e uma certa inadaptação social, os problemas da exclusão, conflitos classistas e hierarquias socias rígidas, uma timidez como que herdada culturalmente e desafiadora, perpassam as aventuras de Bandini com uma naturalidade que pode parecer superficial. Nada há de superficial nestes retratos crus, fiéis à realidade, de uma América dividida por castas, com seus nichos de miséria e sonhos de sucesso, a América das oportunidades que atira para a valeta comum do malogro os inadaptados, os insurrectos, os autênticos, ou seja, todos aqueles que não estejam dispostos a jogar o jogo do carreirismo. Neste sentido, nada há de ingénuo na paixão de Bandini pela senhoria muito mais velha, na recusa de associar o seu nome a um argumento medíocre, na confissão de uma certa cobardia nos assuntos do amor, na frustração sentida perante o salário sem produtividade que o justificasse, no desprezo da fama dos outros ao mesmo tempo que se encena uma putativa fama pessoal. 
   A questão é sempre a de uma insegurança que impele a personagem para a solidão, para o isolamento, para uma extrema dificuldade em manter e alimentar relações sociais, ao mesmo tempo que busca afirmar-se e não se sente propriedade do destino. Por isso nos comove o começo da saga, quando num breve fakshback John Fante recorda a origem de tudo no princípio do fim:



Fui à biblioteca. Passei os olhos pelas revistas, pelas fotografias que traziam lá dentro. Um dia aproximei-me das estantes e tirei um livro. Era o Winesburg, Ohio. Sentei-me numa mesa de mogno comprida e comecei a ler. De repente, o meu mundo ficou virado do avesso. O céu desabou. O livro prendeu-me. Fui surpreendido pelas lágrimas. O coração batia acelerado. Li até me arderem os olhos. Levei o livro para casa. Li outro do Anderson. Eu lia e lia e sentia-me desolado e sozinho e apaixonado por um livro, vários livros, até que a coisa surgiu naturalmente, e sentei-me com um lápis e um bloco grosso, e tentei escrever, até que senti que não poderia continuar porque as palavras não apareciam tal como apareciam no Anderson, surgiam apenas como gotas de sangue vindas do meu coração.



Mais coisa menos coisa, anos mais tarde Bukowski dirá o mesmo de John Fante. Presume-se que seja também esta a história da literatura, muito mais do que aquela que ensinam nas escolas e rotulam em pastas e dossiers ao gosto sóbrio, cinzento e chato das academias. Não sei quantos prémios estes autores terão amealhado em vida, mas estou certo de que o testemunho das suas vidas é hoje um prémio para os seus leitores.

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