segunda-feira, 6 de outubro de 2014

O FIM DE UM WEBLOG

Em tempos, o fim de um weblog gerava ondas de comiseração. Entre o encómio e a bonacheirice de um "até sempre" que nunca existiu, porque nestas coisas a proximidade ilude-se pela frequência, o autor hesitava, ponderava, tais e tantos eram os pedidos que não partisse, as angústias do silêncio, as desesperadas ameaças de eterna solidão. O espectáculo do fecho retomava o espectáculo da partida, com os navios afastando-se e a tripulação acenando para quem ficava em terra também a acenar. De adeus definitivos nem a morte sabe, pelo que, por vezes, muitas vezes, tantas e tão enfadonhas vezes, o escriba desactivado ressuscitava, voltava a activar a pena com a alma insuflada d’elogio, retomava a actividade para gáudio dos desesperados e alegria do próprio. Nisto tudo há vaidade, sempre houve, e uma mais ou menos recalcada necessidade afectiva (?) sentimental (?). Não é coisa que se deva levar a mal, até por ser humana.
Agora, a indiferença contaminou este circo de afectos. O weblog fecha e nós deixamos de bater à porta. Finis Coronat Opus, anuncia o escritor J. Rentes de Carvalho lá no Tempo Contado. Tem(-me) feito companhia, sentirei falta até me habituar à mesma. Os últimos textos que deixa são reveladores do que ofereceu aos leitores anos a fio e com admirável regularidade. O que eu mais gosto naqueles textos é o acérrimo combate ao estereótipo, um desprezo pelas ideias feitas que não recusa, porém, a pertinência do lugar-comum. Veja-se, por exemplo, como as assimetrias sociais são enquadradas pelos números da ostentação: este tem tantos carros, aquele colecciona ferraris, o outro faz do luxo modo e meio de vida. Mas essas assimetrias não valem por si só, e se alguma coisa dizem sobre o que é ser humano pouco revelam sobre o que é ser humano em sociedade. Por isso, o autor remata com a cereja no topo do bolo (passe a expressão): o jovem amigo holandês que emigrou para o Mumbai e aí singrou, sem deixar de se impressionar com a miséria local. Cita-se:
«Uma coisa sinceramente o aflige quando vai para o trabalho: os pobres que, deitados no passeio, lhe dificultam a entrada no prédio. O que ele acabava de descobrir, e no mail me queria contar, era que os infelizes que dormem no passeio não o fazem de graça, têm de pagar umas quantas rupias ao manager do passeio, em geral um ou outro que nessa rua tem loja.»
O leitor lê e interroga-se sobre os mesquinhos donos do passeio, tende a esquecer-se do fausto da meia dúzia supracitada, mas não esquece, estabelece pontes, a miséria humana, de facto, é transversal, a do espírito, não a material, é essa miséria espiritual que não tem classes, a coisa “mais bem” distribuída do mundo, Descartes pretendia o bom senso, saiu-lhe a miséria espiritual.
O post seguinte faz do mesmo, mas com outra história. Lavar roupa suja é o tema, ou assim parece. O tema é a essência humana, chamo-lhe isto no sentido de aroma, fragância de mau cheiro. Novamente o espírito mesquinho, triste e cansativamente previsível do social:
«O que é que de facto mudou na nossa sociedade? O escândalo do casal em questão, os escândalos anteriores e futuros, os que nos contam e os que ignoramos, não nos virão em linha directa, mas herdámo-los dos antepassados, que quando vieram ricos da Índia imitaram Nero, ferrando de prata as suas mulas; andaram depois dois séculos de mão estendida esmolando aqui e ali; voltaram às ferraduras de prata quando lhes chegou o ouro do Brasil. Seguiram-se outros dois séculos de penúria e vergonha, até que nos aproximaram a teta que o senhor Mário Soares aconselhou a chuparmos ao máximo. Os que estão perto dela de novo ferram de prata as suas mulas, ou o moderno equivalente. Os outros terão de esperar vez. Onde está a novidade? Qual é a surpresa?»
O retrato impiedoso de uma sociedade em particular, impiedoso ou simplesmente lúcido, tem efeito similar quando o tema se estende à humanidade em geral, um efeito maiêutico, de “abre-olhos”. Oferece-nos elementos para uma reflexão desencantada, como, aliás, se quer toda a reflexão. Agradar ao leitor? Pois sim, tanto quanto agrada tudo o que enriquece (o espírito, claro, para que não fique do tamanho do espírito dos donos do passeio).

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