terça-feira, 14 de outubro de 2014

PESSOA PEDRO CESARINY

Embora o sumário não o indique, o mais recente número da revista LER oferece dois interessantes artigos sobre poesia. A páginas 72, Hugo Pinto Santos traça um panorama da poesia britânica contemporânea repleto de referências e de citações. Depois da Antologia da Poesia Britânica Contemporânea (Livros Horizonte, Junho de 1982), prefaciada, organizada e traduzida por Manuel de Seabra, não me ocorre uma visita a terras de Sua Majestade tão proveitosa para os leitores portugueses (eventualmente interessados). Mais para o fim, João Luís Barreto Guimarães (JLBG) ensaia uma leitura de Todas as Palavras — Poesia Reunida (Assírio & Alvim, 2012). Ainda que não me inspire quaisquer reparos a leitura feita sobre a poesia de Manuel António Pina, o mesmo não posso deixar de fazer relativamente a uma consideração genérica que abre o artigo. Afirma JLBG que «uma das poucas características que diferencia ficcionistas dos poetas é o facto de aqueles escreverem vários livros ao longo da vida enquanto os poetas escrevem apenas um». A ideia de que a obra de um poeta é a reunião da sua poesia deixa-nos de atalaia, vindo-nos logo à memória vários poetas cuja reunião da produção levada a cabo ao longo da vida seria ineficaz e até atentatória dos princípios que estiveram na criação da mesma. Porque não pretendo alongar-me, recordo apenas dois dos nossos maiores poetas do séc. XX: Fernando Pessoa e Mário Cesariny. E se recordo estes é porque pretendo referir-me a um outro, bastante esquecido e ignorado, que serve de ponte entre ambos: António Pedro (1909-1966). 
   É verdade que em 1936 António Pedro reuniu num só volume parte considerável da sua produção precedente, mas Primeiro Volume. Canções e Outros Poemas / 1927-1935 marca um ponto de viragem entre o que foi e o que será. A inflexão parece de tal modo radical que deixa aos críticos da desigualdade, quase sempre conformados com o tédio da igualdade, pretexto bastante para desconsiderar o poeta e a obra. Ora, a pluralidade e a diferença são, precisamente, as características fundamentais desses três grandes poetas (António Pedro estabelecendo uma espécie de ponte entre o modernismo de Orpheu e o surrealismo tardio português, embora ele o tenha introduzido por cá antes do mesmo se consubstanciar na fundação do malogrado Grupo Surrealista de Lisboa em 1947). O que diferencia ficcionistas destes poetas, destes grandes poetas, não é o facto destes terem escrito apenas um livro (escreveram vários e assaz díspares, sendo que Pessoa publicou apenas um e nem é o seu melhor). Cesariny, se bem sei, sempre recusou as reuniões que tanto agradam a académicos e aos ansiosos do cânone (deviam tomar ansiolíticos). Vale pelos poemas, cada um deles isoladamente e todos em relação com tudo e com todos. Já a António Pedro, que escreveu livros de poesia, narrativa e drama, bastariam três ou quatro poemas devidamente divulgados e estudados para que o seu nome fosse resgatado do esquecimento (será ostracismo? será ignorância? Será revanchismo?). 
   Releiam Proto-Poema da Serra d’Arga, Invocação para um poema marítimo, Os sete poemas do tédio estéril, Para servir de final ou Justificação duma reincidência circunstancial e poderão reencontrar-se com o que de melhor a poesia portuguesa da primeira metade do séc. XX tem para nos oferecer. Já deixei aqui um, deixo agora outro:

PARA SERVIR DE FINAL

Para servir de final bastava um ponto final
Se tivesse havido coragem:
Acabar com esta ilusão das palavras que já não servem,
Deixar morrer a poesia de morte natural;

Para servir de final também bastava o conforto da vida
Se a vida soubesse dar conforto
De forma a que nem apetecesse
Este a gente deixar-se à mercê do que nos mói
A ansiedade e os ouvidos;

Para servir de final — isso é que era um final! —
Chegavam umas poucas de pás de terra,
E o refastelar dos bichos,
Ali, a roerem consolados
Nesta pele podre e sensível…

E, no entanto, ainda apetece um post-scriptum,
Apetece ainda este gosto desarrazoado
De estar a falar com pessoa nenhuma
Que mais não seja para gritar
— A Poesia morreu! Morra a Poesia!
Coma a terra os poetas deste mundo!

Sobre um lodo de sangue os homens-lobos resolveram
Andar aos rebanhos, como os cordeiros;
Fecharam-se-me todas as portas
E ninguém cabe pela minha;
Apagou-se a luz de Deus
E a esperança, com ela, arrefeceu-me no sémen;
Sei que hei-de acabar, como as pedras, em incómodo
E me hão-de as mulheres limpar dos olhos com água bórica;
Por ser cedo, ou ser tarde,
Já nem me lembro dos meus vinte anos
— Deixei morrer a fé, e não chegou a resignação;
Sumiu-se o bicho harmonioso
Que assoprava esquecimento aos meus ouvidos
E, até as minhas mãos
Se recusam, às bolhas, a uma harmonia concisa;
Das estrelas que semeei nasceram só gritos estéreis;
Os monstros que acariciei riram-se da minha angústia
E tomaram-me nas manápulas para que fosse um deles
E só me falta deixar que o fogo acabe tudo…

Lá virá! Lá virão línguas ou pétalas ardendo
Sobre o vento que me desgrenha os nervos e os cabelos
Consumir-se no espectáculo
Dum grande incêndio final!...

                                                 (Resta-me cultivar esta mentira
                                                  Como uma planta de vaso capaz de algumas folhas
                                                 (Antes de ir para o esterco.)

Moledo, Julho de 1949.



António Pedro, in Antologia Poética, edição de Fernando Matos Oliveira, Angelus Novus, 1998, pp. 77-78.

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