quarta-feira, 15 de outubro de 2014

PAIS

Pais que se comportam como adolescentes, adolescentes que se comportam como crianças, crianças que parecem gente adulta. Não é gralha nem lapso, os pais preocupam-me. Lido com eles diariamente e, por estes dias, pela mais estimulante das razões: manuais escolares. Uma contrariedade, como já ouvi dizer. Não é dinheiro que se gaste com agrado, é dinheiro que se gasta por obrigação. Muitos nem consideram o dispêndio investimento, é dinheiro deitado fora porque: os miúdos não querem a escola, a escola não quer os miúdos. A tragicomédia educativa no país parece dar razão aos pais, mas os pais não têm razão alguma. Pelo menos muitos daqueles com quem lido, os que parecem ter-se demitido de serem pais. Demitiram-se de ser pais quando esperam da escola o papel que é deles: educar. Colocam nos professores o papel que é deles: transmitir valores. Nem sequer servem de exemplo, nem sequer se preocupam em dar exemplo. Os pais generalizam-se para simplificar, nem todos serão como estes pais. Mas vamos passar algodão em rama sobre a chaga? Há cada vez mais pais que não são pais, são uma espécie, como dizê-lo, de fonte de rendimento até à autonomia. Não passam tempo com os filhos, e muitos consideram-no uma bênção. Não falam com os filhos senão para responder a solicitações, as materiais. Os pais dão trocos para o fim de semana, compram roupa, dão guarida, levam com os manuais na cabeça, vão de casa para o trabalho e vêm do trabalho para casa cheios de angústias e de traumas e de frustrações porque, foda-se, tiveram o azar ou cometeram a imprudência de serem pais. Só não se dizem arrependidos porque Deus pode ouvi-los e no Inferno há vaga. Os pais que não querem ser pais são uma praga impossível de desparasitar, não há escola para eles, não há escola para a escola que também é feita de pais, só há escola para os alunos e alguns, quando calha, são pais precoces e ficam cheios de medo e pensam na vida e temem pelo futuro deles e dos filhos e até pelo futuro dos pais. Esta gente complica a existência, julga-se eterna, desconfio, não terá espelhos para ver o tempo passar pelo corpo e as faculdades que o vento usurpa. Fazem análises, radiografam o esqueleto, testes, exames, vão ao médico, consultam psicólogos, pediatras, metem-se na psicanálise, vão à missa, confessam-se, pagam a bruxas, astrólogos, quiromantes, retiram o diabo do corpo aos energúmenos que têm lá em casa e aos que têm dentro de si próprios. Alguns, se pudessem, faziam como outrora fizeram certas que não lembro quais tribos: matavam os filhos à nascença. Porque querem ser pais os pais? Para terem uma coisa fofinha lá em casa? Mas a coisa fofinha chora, esperneia, caga-se, mija, vomita, tem febre, precisa de cuidados e de tempo e de atenção e, ai o inferno, reivindica porque reivindicará direitos e nesses direitos começam, claro, as obrigações dos pais: falar, comunicar, valorar, educar. E amar? Há pais que não amam, há pais que não foram amados quando eram filhos, mas sobretudo há pais que não sabem amar. Amam dando, dão contrariados, é como se amassem contrariados, e andam revoltados com o preço dos manuais, com os resultados da selecção, com a economia, já nem lêem nem vêem televisão, excepto se for a bola, um filme erótico, porrada, telenovela a espaços, preferem conversa no café do bairro, conversa rápida, ocupação certeira, caça, putas, pesca, cartas. Andam à toa e pela toa trazem os filhos, que crescem e se tornam homens e se fazem pais num país onde cada vez mais os pais se parecem com os filhos e os filhos com órfãos. Pelo que se vê nas notícias é assim. Onde andam os pais dos miúdos? Onde andam os pais desses miúdos que se divertem a atirar carros de compras para o Mondego? Ou não serão miúdos? Ou terão pais? Onde andam os pais dos praxados e dos praxantes que estupidificam tudo com a sua simples presença? Virão nos manuais, estes pais? Não puxam orelhas, prática bárbara, não recriminam, hábito ultrapassado, reforçam positivamente de acordo com as práticas em vigor, não tradicionalizam, modernizam, andam nos psicólogos, nos psiquiatras, fazem psicanálise, perdem-se na estante de puericultura a ler e a comprar livros que ensinam… a amar os filhos. Isto é tudo inacreditável, a realidade é inacreditável, os livros sobre educação são inacreditáveis, a pedagogia é inacreditável, o inacreditável parece estar a funcionar muito bem, é cada vez mais real, um sucesso de vendas.

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