sexta-feira, 24 de outubro de 2014

VENTO CAYMMI


 
 

Não foi por acaso que Caymmi exigiu gravar a série das praieiras em seu primeiro long-play, de 1954, chamando justamente Canções Praieiras, em formato voz e violão (procedimento quase inusitado na época). É que o violão de Caymmi, nas praieiras, não é um violão de acompanhamento, mas antes um recurso como que cinematográfico: ele cria um setting, compõe uma paisagem, estabelece um cenário.
Como seu violão consegue isso? Não exatamente imitando, mas se transformando nas coisas que quer mostrar; em «O Vento» (canção praieira que entretanto não consta desse primeiro LP), o violão dissolve-se, como se fosse o próprio fenómeno da natureza; em «Canoeiro», o violão vira um remo que bate na água, um braço que puxa a corda, um corpo que colhe a rede; em «O Mar», o violão, primeiramente, espraia-se, tornando-se o movimento mesmo da maré, depois se torna dramático, para contar a história de Pedro e do enlouquecimento de Rosinha. Esse violão mimético, proteico, transformando-se nas coisas consegue apresenta-las; daí o «sentido profundo» - e paradoxal – desse figurativo: trata-se de uma figuração abstrata, uma figuração que se dá ao nível da música, linguagem abstrata por excelência (as palavras «representam» as coisas; os sons, em princípio, não).

 

Francisco Bosco, in Dorival Caymmi: o pai da Bahia, LER n.º 134, Junho de 2014, p. 76.

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