sexta-feira, 21 de novembro de 2014

MEDULA: DOIS LIVROS

Começa a ser um lugar-comum, embora nunca seja de mais acentuá-lo, referir o esforço colocado por pequenos projectos editoriais na sobrevivência da edição de poesia em Portugal. Medula vai na sexta publicação, tem sede em Coimbra, fora do núcleo lisboeta, arrisca em nomes praticamente desconhecidos, não necessariamente portugueses, e cultiva as edições limitadas. Há nisto um risco louvável que não encontra eco devido na imprensa especializada, raramente disponível para sair de onde tudo o que é relevante parece acontecer: a agenda do crítico. Não fosse a libertária função da rede, dificilmente teríamos conhecimento da estreia de E. Ethelbert Miller (n. 1950) em língua portuguesa.
Afro-americano nascido no Bronx, este “literary activist” conta com vários prémios no currículo e publica poesia desde 1974. Andromeda foi o livro de estreia. Infelizmente, nada em Falta de Ar (Medula, Setembro de 2014) nos informa sobre tais aspectos. A discrição destas edições fica-se pela referência à tradução, neste caso do próprio editor e também autor manuel a. domingos, números de exemplares impressos e pelo sempre bom gosto na escolha de uma imagem para a capa. Gostaria, porém, de saber se Falta de Ar, tradução pedida de empréstimo ao poema The Shortness of Breath, é uma antologia, um livro novo na curta bibliografia do autor (pouco mais de meia dúzia de livros de poesia, se bem consegui apurar) ou a tradução de um volume publicado anteriormente (onde e quando?). Ter-se optado por uma edição bilingue é digno de aplauso, mas falta o enquadramento biobibliográfico que permitiria alguma luz sobre um autor de todo desconhecido no circuito português.
Os poemas de Falta de Ar são de uma enorme contenção lexical, tendendo por vezes para o sublinhado epigramático cuja aparente simplicidade gera curiosos enredos temáticos. É verdade que pela repetição da palavra amor, na forma substantiva ou enquanto verbalização do gesto amoroso, somos tentados a considerar estes poemas no contexto de uma lírica de contornos eróticos. Mas esses contornos envolvem no seu interior uma ética onde o problema existencial, a liberdade e a morte, surgem de uma profundidade que as palavras apenas anunciam. A título de exemplo, fique este assertivo poema:

Amar é sobre perdoar —
por isso perdoo-te seres tu — seres
bela e maravilhosa (sempre) e rires
e fazeres nascer poemas — seres uma amiga
que me faz uivar sempre que sonho
com a tua nudez — o que acontece muitas vezes
Já não tenho palavras para amor — só lágrimas.
Sim, chorar é o rio junto ao qual caminho
quando penso em ti.

Talvez alguns destes versos aceitassem outras soluções de tradução. Por exemplo, não ficaria melhor «o que acontece tantas vezes / que já não tenho palavras para amor» como versão para «wich is so often / I no longer have words for love»? Evitava-se uma maiúscula desnecessária no início de um verso e consequente quebra rítmica. Pormenor que, estando disponível o texto original, não deve colocar reservas quanto à disponibilidade para uma leitura.
Bem diferente é o caso Namban (Medula, Outubro de 2014). John Mateer (n. 1971) não é um total desconhecido. Nascido na África do Sul, foi viver para o Canadá, regressou ao país de origem e fixou-se na Austrália. Viajante incansável, ouvimos falar dele pela primeira vez a propósito de um pequeno volume publicado pela Tea for One (com tradução de Andreia Sarabando e Miguel Martins) em 2009. Manuel de Freitas escreveu sobre ele no Expresso. Outros livros em português apareceram nas editoras Língua Morta e Averno, mais precisamente no ano de 2012. O poeta integrou ainda o Programa Poetas em Residência 2010, tendo à época sido anunciada a publicação de Namban pela Tea For One.
O interesse de John Mateer pela cultura portuguesa e pela sua presença no mundo explica a atenção, mas não a justifica por si só. Valem, sobretudo, os poemas. Diga-se que namban é termo de origem japonesa com o significado “bárbaros do sul”, apelido dado aos europeus que aportavam em terras de sol nascente por altura dos descobrimentos. Southern Barbarians (2007), sobre a presença dos portugueses no mundo, é um dos livros do autor e título de um dos conjuntos deste volume. O estudo dos grandes escritores portugueses, Camões e Pessoa serão os mais evidentes embora outros existam, nota-se ao longo dos poemas. Talvez influenciado pelas múltiplas referências históricas, lembrei-me amiúde de João Miguel Fernandes Jorge.
Namban é uma representação de lugares, (re)visitas, contactos com a história portuguesa. Menções a Lisboa e Coimbra, mas também às cidades do império colonial português, sustentam um discurso onde a presença do sujeito surge influenciada pela cultura, pela noção histórica, pelo conhecimento. Não se ausentando dos poemas em proveito da reconstrução ou recriação histórica, o sujeito poético como que se representa na encruzilhada da história. É uma espécie de exilado que transporta para a pátria poética a experiência do desterro, ao mesmo tempo que se reconstrói num diálogo aberto com a realidade. O remate do poema Cemitério da Ajuda é elucidativo: «Estou farto disto. Não consigo parar de chorar» (p. 19). Voltaremos a sentir a mesma explosão emotiva:

AINDA EXISTE OUTRO LUGAR

Anos antes de andar pelas ruas calçadas de Lisboa
e, bebendo uma bica piscar o olho a mim próprio no espelho
por trás do balcão n’A Brasileira

Anos antes, ao descobrir numa livraria
em Quioto o livro de Pessoa Lisboa:
O que o turista deve ver, quase chorei

Quase chorei de tão feliz
por outros na Velha Capital
estarem a sonhar com o Império da Nostalgia

Tão feliz porque em todas as nossas mentes
ainda existe outro lugar
e aí um alçapão: a voz humana: saudade


Este Império da Nostalgia, referido de igual modo no poema Ensaio Sobre a Doçura, acaba por sintetizar o tom geral de Namban, conjunto de poemas que têm o cada vez mais raro valor de ser cultos em andamento, ou seja, captando o trânsito das coisas, viajando, vadiando, misturando-se com os cheiros das ruas sem largar no lixo o cheiro da História. Belíssimo livro onde vislumbramos a perspectiva do outro sobre nós, falando em termos culturais, mas um outro que entre nós se mistura para que se não perca em elogios fúteis ou críticas fúnebres. Porque este outro, afinal, e como sempre sucede na mais alta poesia, esconde um eu que a palavra ilumina, que a língua revela, que a poesia mostra. A tradução é de Andreia Sarabando.

5 comentários:

Anónimo disse...

= Afro-americano nascido no Bronx, este “literary activista” conta com vários prémios no currículo e publica poesia desde 1974.(...) . Infelizmente, nada em Falta de Ar (...)) nos informa sobre tais aspectos. A discrição destas edições (...) =

**Pois pois. Quem não aprendeu a comerciar ou talvez nunca venha a aprender. **

manuel a. domingos disse...

bom dia.

em primeiro lugar: muito obrigado pelas tuas palavras.

em segundo lugar: o livro "Falta de Ar" é um inédito do autor, concebido, de propósito, para a Medula. e tens razão: poderia vir essa informação no livro. a ver em futuras edições.

abraço

hmbf disse...

anónimo, o que está escrito é “literary activist”. aprenda a copiar. se o editor não aprendeu a comerciar (?), tanto melhor.

manuel a. domingos disse...

:-D

abraço

Anónimo disse...

Anónimo disse...
= Afro-americano nascido no Bronx, este “literary activista” conta com vários prémios no currículo e publica poesia desde 1974.(...) . Infelizmente, nada em Falta de Ar (...)) nos informa sobre tais aspectos. A discrição destas edições (...) =

**Pois pois. Quem não aprendeu a comerciar ou talvez nunca venha a aprender. **
22 de Novembro de 2014 às 12:13
manuel a. domingos disse...
bom dia.

(....)

22 de Novembro de 2014 às 12:13
hmbf disse...
anónimo, o que está escrito é “literary activist”. aprenda a copiar. se o editor não aprendeu a comerciar (?), tanto melhor.
22 de Novembro de 2014 às 15:00

Eu sei copiar, mas mal.

(Obrigado pela lembrança)

Anónimo José