Começa a ser um lugar-comum, embora nunca seja de mais acentuá-lo,
referir o esforço colocado por pequenos projectos editoriais na sobrevivência
da edição de poesia em Portugal. Medula vai na sexta publicação, tem sede em
Coimbra, fora do núcleo lisboeta, arrisca em nomes praticamente desconhecidos,
não necessariamente portugueses, e cultiva as edições limitadas. Há nisto um
risco louvável que não encontra eco devido na imprensa especializada, raramente
disponível para sair de onde tudo o que é relevante parece acontecer: a agenda
do crítico. Não fosse a libertária função da rede, dificilmente teríamos
conhecimento da estreia de E. Ethelbert Miller (n. 1950) em língua portuguesa.
Afro-americano nascido no Bronx, este “literary activist”
conta com vários prémios no currículo e publica poesia desde 1974. Andromeda
foi o livro de estreia. Infelizmente, nada em Falta de Ar (Medula, Setembro de
2014) nos informa sobre tais aspectos. A discrição destas edições fica-se pela
referência à tradução, neste caso do próprio editor e também autor manuel a.
domingos, números de exemplares impressos e pelo sempre bom gosto na escolha de
uma imagem para a capa. Gostaria, porém, de saber se Falta de Ar, tradução
pedida de empréstimo ao poema The Shortness of Breath, é uma antologia, um
livro novo na curta bibliografia do autor (pouco mais de meia dúzia de livros
de poesia, se bem consegui apurar) ou a tradução de um volume publicado
anteriormente (onde e quando?). Ter-se optado por uma edição bilingue é digno
de aplauso, mas falta o enquadramento biobibliográfico que permitiria alguma
luz sobre um autor de todo desconhecido no circuito português.
Os poemas de Falta de Ar são de uma enorme contenção
lexical, tendendo por vezes para o sublinhado epigramático cuja aparente
simplicidade gera curiosos enredos temáticos. É verdade que pela repetição da
palavra amor, na forma substantiva ou enquanto verbalização do gesto amoroso,
somos tentados a considerar estes poemas no contexto de uma lírica de contornos
eróticos. Mas esses contornos envolvem no seu interior uma ética onde o
problema existencial, a liberdade e a morte, surgem de uma profundidade que as
palavras apenas anunciam. A título de exemplo, fique este assertivo poema:
Amar é sobre perdoar —
por isso perdoo-te seres tu — seres
bela e maravilhosa (sempre) e rires
e fazeres nascer poemas — seres uma amiga
que me faz uivar sempre que sonho
com a tua nudez — o que acontece muitas vezes
Já não tenho palavras para amor — só lágrimas.
Sim, chorar é o rio junto ao qual caminho
quando penso em ti.
Talvez alguns destes versos aceitassem outras soluções de
tradução. Por exemplo, não ficaria melhor «o que acontece tantas vezes / que já
não tenho palavras para amor» como versão para «wich is so often / I no longer
have words for love»? Evitava-se uma maiúscula desnecessária no início de um verso e consequente quebra rítmica.
Pormenor que, estando disponível o texto original, não deve colocar reservas
quanto à disponibilidade para uma leitura.
Bem diferente é o caso Namban (Medula, Outubro de 2014). John
Mateer (n. 1971) não é um total desconhecido. Nascido na África do Sul, foi
viver para o Canadá, regressou ao país de origem e fixou-se na Austrália.
Viajante incansável, ouvimos falar dele pela primeira vez a propósito de um
pequeno volume publicado pela Tea for One (com tradução de Andreia Sarabando e
Miguel Martins) em 2009. Manuel de Freitas escreveu sobre ele no Expresso.
Outros livros em português apareceram nas editoras Língua Morta e Averno, mais
precisamente no ano de 2012. O poeta integrou ainda o Programa Poetas em
Residência 2010, tendo à época sido anunciada a publicação de Namban pela Tea
For One.
O interesse de John Mateer pela cultura portuguesa e pela
sua presença no mundo explica a atenção, mas não a justifica por si só. Valem, sobretudo, os poemas. Diga-se que namban é termo de origem japonesa com o significado
“bárbaros do sul”, apelido dado aos europeus que aportavam em terras de sol
nascente por altura dos descobrimentos. Southern Barbarians (2007), sobre a
presença dos portugueses no mundo, é um dos livros do autor e título de um dos
conjuntos deste volume. O estudo dos grandes escritores portugueses, Camões e
Pessoa serão os mais evidentes embora outros existam, nota-se ao longo dos
poemas. Talvez influenciado pelas múltiplas referências históricas, lembrei-me
amiúde de João Miguel Fernandes Jorge.
Namban é uma representação de lugares, (re)visitas,
contactos com a história portuguesa. Menções a Lisboa e Coimbra, mas também
às cidades do império colonial português, sustentam um discurso onde a presença
do sujeito surge influenciada pela cultura, pela noção histórica, pelo
conhecimento. Não se ausentando dos poemas em proveito da reconstrução ou
recriação histórica, o sujeito poético como que se representa na encruzilhada
da história. É uma espécie de exilado que transporta para a pátria poética a
experiência do desterro, ao mesmo tempo que se reconstrói num diálogo aberto
com a realidade. O remate do poema Cemitério da Ajuda é elucidativo: «Estou
farto disto. Não consigo parar de chorar» (p. 19). Voltaremos a sentir a mesma
explosão emotiva:
AINDA EXISTE OUTRO LUGAR
Anos antes de andar pelas ruas calçadas de Lisboa
e, bebendo uma bica piscar o olho a mim próprio no espelho
por trás do balcão n’A Brasileira
Anos antes, ao descobrir numa livraria
em Quioto o livro de Pessoa Lisboa:
O que o turista deve ver, quase chorei
Quase chorei de tão feliz
por outros na Velha Capital
estarem a sonhar com o Império da Nostalgia
Tão feliz porque em todas as nossas mentes
ainda existe outro lugar
e aí um alçapão: a voz humana: saudade
Este Império da Nostalgia, referido de igual modo no poema
Ensaio Sobre a Doçura, acaba por sintetizar o tom geral de Namban, conjunto de
poemas que têm o cada vez mais raro valor de ser cultos em andamento, ou seja,
captando o trânsito das coisas, viajando, vadiando, misturando-se com os
cheiros das ruas sem largar no lixo o cheiro da História. Belíssimo livro onde
vislumbramos a perspectiva do outro sobre nós, falando em termos culturais, mas
um outro que entre nós se mistura para que se não perca em elogios fúteis ou críticas
fúnebres. Porque este outro, afinal, e como sempre sucede na mais alta poesia,
esconde um eu que a palavra ilumina, que a língua revela, que a poesia mostra. A tradução é de Andreia Sarabando.
5 comentários:
= Afro-americano nascido no Bronx, este “literary activista” conta com vários prémios no currículo e publica poesia desde 1974.(...) . Infelizmente, nada em Falta de Ar (...)) nos informa sobre tais aspectos. A discrição destas edições (...) =
**Pois pois. Quem não aprendeu a comerciar ou talvez nunca venha a aprender. **
bom dia.
em primeiro lugar: muito obrigado pelas tuas palavras.
em segundo lugar: o livro "Falta de Ar" é um inédito do autor, concebido, de propósito, para a Medula. e tens razão: poderia vir essa informação no livro. a ver em futuras edições.
abraço
anónimo, o que está escrito é “literary activist”. aprenda a copiar. se o editor não aprendeu a comerciar (?), tanto melhor.
:-D
abraço
Anónimo disse...
= Afro-americano nascido no Bronx, este “literary activista” conta com vários prémios no currículo e publica poesia desde 1974.(...) . Infelizmente, nada em Falta de Ar (...)) nos informa sobre tais aspectos. A discrição destas edições (...) =
**Pois pois. Quem não aprendeu a comerciar ou talvez nunca venha a aprender. **
22 de Novembro de 2014 às 12:13
manuel a. domingos disse...
bom dia.
(....)
22 de Novembro de 2014 às 12:13
hmbf disse...
anónimo, o que está escrito é “literary activist”. aprenda a copiar. se o editor não aprendeu a comerciar (?), tanto melhor.
22 de Novembro de 2014 às 15:00
Eu sei copiar, mas mal.
(Obrigado pela lembrança)
Anónimo José
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