sexta-feira, 21 de novembro de 2014

UMA PEDRA NA INFÂNCIA


Põe uma pedra
uma pedra sobre a infância

Para que de vez se cale essa respiração
contida suspensa no escuro

Põe, digo-te, uma pedra de silêncio sobre
essa infância essa fala ininterrupta essa

falagem que falha e promete e inventa
os sonhos e as promessas o riso sem porquê

Para que de vez se interrompa a esperança esse
mal que não desiste. Escreve, faz o que o ditado dita:

Enterra no silêncio da pedra essa intolerável coisa
que é a infância, as vozes da noite do poço.

Apaga a infância isso que falta sempre à chamada
e para sempre trocou já os desejos e os medos.

Já não vais a tempo, ela enredou sem remédio
as vidas os nomes a tua condenação. Mas vai.

Para que se cale de vez essa respiração que se ri
na cara da morte, nos olhos do enviado de deus

recita o que o ditado ditou: Põe uma pedra sobre
a infância e ouve a erva a folhagem que cobrem

o céu em ruínas.

Também então havia uma pedra no canto do quarto
Ali onde a noite começava, era uma pedra e depois
crescia, petrificava-se no seu coração de pedra
dividia-se e eram várias crescendo; ocupando
todo o espaço do sono, do sonho do mundo.
Pesavam no teu peito procuravam-te os olhos
que de pedra ficavam e o grito era uma pedra
que na garganta subia contra a outra pedra.
O próprio ar golpeado era e dividia a voz
pedra contra pedra, o deserto a perder de vista.

Põe uma pedra sobre outra pedra. Inventa uma
outra infância de que possas recordar-te.

Obedeces ao poema e é sem espanto que vês:
nada acontece. Não há

nenhuma voz na voz dos condenados.

Manuel Gusmão (n. 1945), in Migrações do Fogo (2004). «O ritmo desta poesia, de uma deliberada plasticidade, não deriva tanto dos versos quanto da sequencialidade sintáctica, da vontade afirmativa e declarativa. Assim, cria zonas de enfeixamento prosódico, nós de construção rítmica, donde se desprendem, deliberadamente, mais os dizeres do que os cantares. (...)Estes poemas, onde o rigor das escolhas lexicais e o decurso complexo parecem traçar um certo hermetismo conceptual, vivem de densos esforços memoriosos: a infância, as mulheres, a mulher, as crianças, a sua textura na malha lírica. Assim produzem, entre as sensações de estranheza elaborativa, um solo de afectos que, como que em pudor, os andaimes, os guindastes do crescimento dos poemas querem neutralizar sem de modo algum o conseguirem. Este jogo de ocultação e de rebentamento da voz emotiva é um dos funcionamentos mais sedutores desta obra. (...) No fundo, o que se joga nesta poesia é o esplendor (magoado ou eufórico) de várias memórias: biológica, biográfica, histórica, da passagem visceral das coisas e dos seres. São estratos que se aglutinam para nos falar de obsessões e da transmutação de cada coisa. Este movimento entre a memória e a mudança vibra, verso atrás de verso, pleno de rumores, de sugestões, representacional e ínvio, mas temendo abstractizar-se: o concreto preenche todos os veios que são a declaração» (Joaquim Manuel Magalhães, in Rima Pobre).

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