terça-feira, 25 de novembro de 2014

ÓDIOVISUAL


uma vez fui à merda
voluntariamente
o que não é bem o mesmo
que me terem lá mandado

fui à boleia por uma autoestrada
que me liga o mero músculo à alma
para que nada me subisse à cabeça
antes de passar pela sensibilidade
só peguei no cosmos na pasta de dentes
num frasco com o cordão umbilical
para ter sempre à mão as raízes
pousei o coração como uma mochila aberta
nunca um dedo espetado foi tão revolucionário
acabei por ir de carroça e burro
mas atravessei meio mundo
pelo caminho fui violado por um jovem polícia
num desses países onde se esquecem de nós para sempre
fui lava pratos num desses países onde já não há gente
para comer seja o que for ou morrer à fome
fui sopeira iluminada numa casa de passe
de um desses países onde ninguém fode
fui jardineiro de um cemitério importante
onde só vai parar quem já nem morre
mas também me apareceu um anjo ao cair da noite
um sábio disse que o meu amor era inocente e forte
um profeta falou da minha vida como se falasse da morte

quando cheguei à merda estavam todos à minha espera
acabei por não entrar achei que não valia a pena
o que não é bem a mesma coisa que o porteiro da merda
me ter impedido de entrar ou fazer concluir à força
que eu já conhecia aquela merda de algum lado.


Joaquim Castro Caldas (n. 1956 – m. 2008), in Convém Avisar os Ingleses (2002). Estreado no alvoroço do 25 de Abril de 1974, Joaquim Castro Caldos publicou uma dezena de livros de poesia ao longo da vida. Nascido em Lisboa, vagueou durante seis anos pela Europa. Veio a fixar-se no Porto, cidade onde se tornou figura central na dinamização da cena poética com a organização das noites de poesia do Pinguim Café.  Com uma escola que remonta às tertúlias organizadas por José Carlos Ary dos Santos, a poesia de Castro Caldas radicaliza as dimensões lúdica e provocatória do poema. Iconoclasta, heterodoxo, libertário, o discurso desta poesia desenvolve-se a partir de uma visão desencantada do mundo e das suas instituições, reagindo de um modo visceral à normatividade e a todo e qualquer engajamento político. Encontramos nestes poemas de inclinação satírica uma postura corrosiva que escolhe como alvos predilectos as forças de ordem nos diferentes estádios da organização social. Entre os estilhaços das paredes partidas podemos encontrar, porém, momentos de esperança, afecto e extrema humanidade, o que aconteceu, de resto, num dos seus derradeiros poemas: «ainda há gente boa, de cabeça deslumbrada, o coração em cima da mesa como uma pistola descarregada, a contar a última aventura sem medo que lh’a levem» (in Mágoa das Pedras).

2 comentários:

manuel a. domingos disse...

cá de casa

Nuno Pereira disse...

lembro-me destas tertúlias e especialmente deste poema no Pinguim