terça-feira, 4 de novembro de 2014

SAUDADES DO QUE NÃO FUI


Para Manuel de Freitas

Saudades da boémia que não sei:
O excesso de bebida. O charro.
(Eu sempre fui respeitador da lei,
Mas de barro.)

Saudades do balcão com a amizade
E o copo de cerveja.
(À noite, despe-se a cidade:
Único corpo nu que me deseja.)

Saudades do carinho
No ombro, na coxa, no cabelo.
(A mão da morte entorna o vinho
À sede de bebê-lo.)

Saudades desse alguém
Que não sei onde mora.
(E não sei de onde vem
Quando demora.)

Saudades do amor
Que nunca foi o meu.
(E de que sou acusador
E réu.)

Saudades da exigir ao velho
A vertigem da fuga.
(Mas não se pode destruir, no espelho,
A ruga.)

(2004)

António Manuel Couto Viana (n. 1923 - m. 2010), in Restos de Quase Nada e Outras Poesias (2006). «Na primeira das publicações não periódicas de poesia dos anos 50, Távola Redonda, 20 números 1950-54 (...), podem distinguir-se duas formas de reacção contra a tendência de realismo social. / Uma dessas formas estéticas é a de um verismo céptico, quase cínico por vezes, e de qualquer modo propenso aos matizes nauseados, sartrianos ou camusianos, do existencialismo. António Manuel Couto Viana (...) preludia essa forma de sensibilidade, desde O Avestruz Lírico, 1948, com uma recusa algo envergonhada do «social», um enorme pudor de afirmar qualquer ternura ou sentimento intenso, com a sua obsessiva consciência do vazio e cansaço de menino amimado de «papas e carinho», depois bom rapaz das amizades de café. É um «soluço de fim de raça», em ritmos estróficos muitas vezes tradicionais e sensivelmente rimados, que, para se manterem «castos», procuram ser breves, mas são ainda mais discursivos que imagistas (...)» (A. J. Saraiva e Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa) «Atravessa estes poemas o trauma do fim absoluto de um Portugal mais vasto do que o das fronteiras europeias em que Couto Viana acreditou, por que lutou, em cuja derrota se sentiu perder. A este modo ideológico de ver as chamadas marcas, presenças, glórias portuguesas, a visitação de algum lugar onde elas se manifestam desencadeia a nostalgia da contemplação do vazio e, quem sabe, da inutilidade do sentimento político que fora desejado como condutor de uma colectividade. / Vazio; mas também plenitude. Pelo que de persistente sinal, ainda que sem um visível projecto de continuidade na história sem ser a do imaginário, pode ainda erguer noutro sonho além do sonho» (Joaquim Manuel Magalhães, in Rima Pobre).

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