domingo, 2 de novembro de 2014

SUICIDAS - antologia de escritores suicidas portugueses

Assumindo como ponto de partida Os Portugueses, um povo suicida (1911), um entre muitos textos que Miguel de Unamuno (1864-1936) dedicou aos amigos portugueses, Pablo Javier Pérez López (1983) corre o risco desnecessário de generalizar sobre um povo inteiro a partir de uma leitura subjectiva e demasiado curta para o fim a que se propõe. Basta atentarmo-nos à dimensão de Suicidas – Antologia de Escritores Suicidas Portugueses (Ática, Outubro de 2014) para percebermos haver aqui um claro exagero, sendo seis os antologiados (podiam ser mais, é certo) e, um deles, heterónimo entre tantos que se não mataram saídos da cabeça de Fernando Pessoa (1888-1935). Temos ainda o problema de saber quão justa poderá ser a generalização quando nem sequer os visados resumem a cultura ou sequer a extensão da literatura portuguesas. A Camilo Castelo Branco (1825-1890) podíamos opor Eça de Queirós (1845-1900), a Antero de Quental (1842-1891) podíamos opor Teixeira de Pascoaes (1877-1952), a Manuel Laranjeira (1877-1912) nada se opõe, é caso isolado, mas para Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) temos o amigo Pessoa e a Florbela Espanca (1894-1930) oporíamos de bom grado Judith Teixeira (1880-1959). Uns mataram-se, por razões lá deles, outros permaneceram vivos, outros embebedaram-se, outros exilaram-se, outros aburguesaram-se, outros enlouqueceram, outros levaram as vidas que levaram e nada temos que ver com isso. Importam as obras e saber se entre elas algo de comum emerge. É neste sentido que devemos desmontar, desde logo, o lugar-comum pronunciado por Valter Hugo Mãe no prefácio: «gosto dos escritores suicidas. Gosto do modo como tiveram a coragem para tudo» (p. 10). Estas declarações de gosto, tantas vezes ouvidas, caem no erro de tomar a floresta pela árvore. Há escritores suicidas de várias formas, tamanhos e géneros, sendo que poucos têm que ver uns com os outros. Quando dizemos gosto de escritores suicidas devemos ter em atenção que tanto Emilio Salgari (1862-1911) como Yukio Mishima (1925-1970) cometeram haraquiri (seppuku), não sendo fácil encontrar entre as obras de ambos os mínimos pontos comuns como fácil será encontrar o que neles há de humano e que os liga a todos os outros seres que escrevem. «Ter coragem para tudo» denota já uma leitura abusiva sobre as razões da (não)vida. Olhemos para os autores incluídos nesta antologia. Camilo Castelo Branco não teve coragem para viver cego, matou-se com 65 anos (boa idade para a época) e deixou escrito: «Não é costume nosso matarmo-nos quando o aborrecimento da vida nos enjoa. Em país algum seria maior a estatística dos suicídios do que em Portugal, se o tédio nos vencesse» (p.32). Portugal, um povo suicida? Em sentido literal? Que dizer dos austríacos (ver aqui)? Também Florbela estava doente quando resolveu antecipar a morte, e Mário de Sá-Carneiro confessou em três despedidas as razões “mesquinhas” da sua decisão: «Podia ser feliz mais tempo, tudo me ocorre, psicologicamente, às maravilhas: mas não tenho dinheiro» (p. 98). Já Antero, em carta a Oliveira Martins, foi sucinto: «A doença, dum modo ou de outro, é o meu estado normal» (p. 62). Doença e falta de dinheiro não fundamentam o “lado dramático” de um povo, que ainda que tenha feito do fado (e há tantos e tão diversos e nem todos são tristes) a sua canção nacional também tem o vira e o corridinho e o fandango. A leitura exagerada de Unamuno, que López infelizmente não desmonta, vem mais uma vez exibir as perspectivas hiperbólicas de «um povo triste», de «um povo de suicidas», de um povo desesperado, desgraçado, decadente, cansado, pessimista, melancólico, desiludido, deprimido, «essencialmente sentimental», padecendo de um «tédio moral» fatalista, sobre o qual pesa, como diria Laranjeira, «a herança trágica, secular, duma ignorância podre e duma corrupção criminosa». Tudo isto terá o seu quê de verdade, mas torna-se estupidamente parcial quando ouvimos cantar o galo de Barcelos ou aprendemos a conviver com o priapismo das Caldas. O que há de mais patético nestas leituras é precisamente o chavão da «dimensão trágica do povo português» que o antologiador sublinha, reduzindo à tristeza, ao pessimismo, ao desespero, à melancolia toda uma cultura que não se esgota em meia dúzia de autores. Eis que nos encontramos na ratoeira do sensacionalismo filosófico. Da mesma forma, parecem-nos erradas as generalizações exercidas sobre as putativas almas espanhola (quixotesca) e portuguesa (saudosista). São perspectivas redutoras que não só não encerram a realidade como lhe usurpam a complexidade paradoxal que está na génese de todas as culturas. O que se pretende, pois, com uma antologia destas? Reafirmar chavões sobre os portugueses? Não me parece ser possível estabelecer padrões a partir de tão frágeis alicerces. No estudo que encerra a antologia, Pablo Javier Pérez López afirma que: «A ausência, a morte vivida e a vida não vivível culminam no existir português» (p. 146). Tal asseveração carece de fundamento que cinco autores e um heterónimo não oferecem, sendo certo que a mesma valeria igualmente, fosse nossa intenção abordá-la pelos mesmos pressupostos, para o existir francês, anglo-saxónico, russo ou argentino… Que valor têm estas afirmações quando confrontadas com as vidas de Camões ou de Bocage? Pode alguém "viver mais" do que viveram esses dois portugueses?

1 comentário:

Luis Eme disse...

também acho um exagero, Henrique.

penso que só no Alentejo é que o suicídio atinge níveis preocupantes.

e a literatura portuguesa nunca foi um caso preocupante. felizmente são muito mais os que decidem ficar, até à última batida do coração.