Assumindo como ponto de partida Os Portugueses, um povo suicida (1911), um entre muitos textos que Miguel de Unamuno (1864-1936)
dedicou aos amigos portugueses, Pablo Javier Pérez López (1983) corre o risco
desnecessário de generalizar sobre um povo inteiro a partir de uma leitura subjectiva
e demasiado curta para o fim a que se propõe. Basta atentarmo-nos à dimensão de
Suicidas – Antologia de Escritores Suicidas Portugueses (Ática, Outubro de
2014) para percebermos haver aqui um claro exagero, sendo seis os antologiados
(podiam ser mais, é certo) e, um deles, heterónimo entre tantos que se não
mataram saídos da cabeça de Fernando Pessoa (1888-1935). Temos ainda o problema
de saber quão justa poderá ser a generalização quando nem sequer os visados
resumem a cultura ou sequer a extensão da literatura portuguesas. A Camilo Castelo
Branco (1825-1890) podíamos opor Eça de Queirós (1845-1900), a Antero de
Quental (1842-1891) podíamos opor Teixeira de Pascoaes (1877-1952), a Manuel
Laranjeira (1877-1912) nada se opõe, é caso isolado, mas para Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916) temos o amigo Pessoa e a Florbela Espanca (1894-1930) oporíamos de
bom grado Judith Teixeira (1880-1959). Uns mataram-se, por razões lá deles,
outros permaneceram vivos, outros embebedaram-se, outros exilaram-se, outros
aburguesaram-se, outros enlouqueceram, outros levaram as vidas que levaram e nada temos que ver com
isso. Importam as obras e saber se entre elas algo de comum emerge. É neste
sentido que devemos desmontar, desde logo, o lugar-comum pronunciado por Valter
Hugo Mãe no prefácio: «gosto dos escritores suicidas. Gosto do modo como
tiveram a coragem para tudo» (p. 10). Estas declarações de gosto, tantas vezes
ouvidas, caem no erro de tomar a floresta pela árvore. Há escritores suicidas de
várias formas, tamanhos e géneros, sendo que poucos têm que ver uns com os
outros. Quando dizemos gosto de escritores suicidas devemos ter em atenção que tanto
Emilio Salgari (1862-1911) como Yukio Mishima (1925-1970) cometeram haraquiri
(seppuku), não sendo fácil encontrar entre as obras de ambos os mínimos pontos
comuns como fácil será encontrar o que neles há de humano e que os liga a todos os
outros seres que escrevem. «Ter coragem para tudo» denota já uma leitura abusiva
sobre as razões da (não)vida. Olhemos para os autores incluídos nesta
antologia. Camilo Castelo Branco não teve coragem para viver cego, matou-se com
65 anos (boa idade para a época) e deixou escrito: «Não é costume nosso matarmo-nos
quando o aborrecimento da vida nos enjoa. Em país algum seria maior a estatística
dos suicídios do que em Portugal, se o tédio nos vencesse» (p.32). Portugal, um
povo suicida? Em sentido literal? Que dizer dos austríacos (ver aqui)? Também
Florbela estava doente quando resolveu antecipar a morte, e Mário de Sá-Carneiro
confessou em três despedidas as razões “mesquinhas” da sua decisão: «Podia ser
feliz mais tempo, tudo me ocorre, psicologicamente, às maravilhas: mas não
tenho dinheiro» (p. 98). Já Antero, em carta a Oliveira Martins, foi sucinto:
«A doença, dum modo ou de outro, é o meu estado normal» (p. 62). Doença e falta
de dinheiro não fundamentam o “lado dramático” de um povo, que ainda que tenha
feito do fado (e há tantos e tão diversos e nem todos são tristes) a sua canção
nacional também tem o vira e o corridinho e o fandango. A leitura exagerada de
Unamuno, que López infelizmente não desmonta, vem mais uma vez exibir as
perspectivas hiperbólicas de «um povo triste», de «um povo de suicidas», de um povo
desesperado, desgraçado, decadente, cansado, pessimista, melancólico, desiludido,
deprimido, «essencialmente sentimental», padecendo de um «tédio moral»
fatalista, sobre o qual pesa, como diria Laranjeira, «a herança trágica,
secular, duma ignorância podre e duma corrupção criminosa». Tudo isto terá o
seu quê de verdade, mas torna-se estupidamente parcial quando ouvimos cantar o
galo de Barcelos ou aprendemos a conviver com o priapismo das Caldas. O que há
de mais patético nestas leituras é precisamente o chavão da «dimensão trágica
do povo português» que o antologiador sublinha, reduzindo à tristeza, ao
pessimismo, ao desespero, à melancolia toda uma cultura que não se esgota em
meia dúzia de autores. Eis que nos encontramos na ratoeira do sensacionalismo filosófico. Da mesma forma, parecem-nos erradas as generalizações
exercidas sobre as putativas almas espanhola (quixotesca) e portuguesa
(saudosista). São perspectivas redutoras que não só não encerram a realidade
como lhe usurpam a complexidade paradoxal que está na génese de todas as culturas.
O que se pretende, pois, com uma antologia destas? Reafirmar chavões sobre os
portugueses? Não me parece ser possível estabelecer padrões a partir de tão frágeis
alicerces. No estudo que encerra a antologia, Pablo Javier Pérez López afirma
que: «A ausência, a morte vivida e a vida não vivível culminam no existir
português» (p. 146). Tal asseveração carece de fundamento que cinco autores e
um heterónimo não oferecem, sendo certo que a mesma valeria igualmente, fosse
nossa intenção abordá-la pelos mesmos pressupostos, para o existir francês,
anglo-saxónico, russo ou argentino… Que valor têm estas afirmações quando confrontadas com as vidas de Camões ou de Bocage? Pode alguém "viver mais" do que viveram esses dois portugueses?
1 comentário:
também acho um exagero, Henrique.
penso que só no Alentejo é que o suicídio atinge níveis preocupantes.
e a literatura portuguesa nunca foi um caso preocupante. felizmente são muito mais os que decidem ficar, até à última batida do coração.
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