Diferente de O Livro das Aves (Prémio Daniel Faria 2009,
Quasi Edições, Abril de 2009), onde a linguagem se desenvolvia num ambiente simbolista
repleto de imagens, alegorias e metáforas de índole mitológica, este Turismo de
Guerra (Edições Artefacto, Agosto de 2014) é muito mais contido nessas erupções
de sentido promovidas pela subjectividade discursiva. Um dos aspectos desde
logo evidentes é o da relação íntima destes poemas com os «lugares de passagem»
por eles evocados. A República Checa, que não é de todo estranha à obra de Tiago
Patrício (n. 1979), surge como palco de situações ilustradas por componentes
identificadores de uma cultura: do vinho da Morávia à
arquitectura soviética, passando pelo Mosteiro de Břevnov, pelo Café Slavia ou pel’O
relógio socialista de Olomouc (título de um dos mais belos poemas do livro).
No
entanto, apesar do pendor descritivo dos poemas, eles penetram os lugares a
partir de vivências intimistas. Longe de se constituírem como meros
postais, nem sequer nos é possível reduzi-los a retratos transfiguradores da
paisagem. Veja-se como no poema Cemitério Judeu se opera uma transposição da
experiência para a alusão, sendo que o referido cemitério é não só um dos
aspectos físicos da paisagem como já a referência metafísica de algo que se
perdeu: «uma vez encontrámos uma rapariga / que nos levou para o último andar
de um prédio / onde se podia ver o antigo cemitério judeu / e depois de três
dias sem sairmos do quarto / decidimos mudar-nos para casa dela // no dia em
que íamos fazer as mudanças / e subíamos a rua em direcção à nossa casa / tu
fixaste um homem do outro lado do passeio / que mandou parar um táxi onde
entraste com ele // e nós ficámos a ver o carro afastar-se / contigo a
desapareceres infinitamente / ao lado daquele homem de uniforme escuro» (p.
39).
Apesar de claramente narrativas, estas estrofes permitem-nos sublinhar
dois aspectos marcantes nas três secções do livro (Língua Eslava,
Cristal da Boémia, Inverno Eslavo). Primeiro, a predominância da
primeira pessoa do plural. Este aspecto é importante por nesta opção ser
possível suspeitar um desvio do foco subjectivo do sujeito poético para a
problematização da experiência em grupo. Por várias ocasiões Tiago Patrício faz
referência à presença de um grupo que, não apagando a presença do sujeito, como
que aparenta protegê-lo do isolamento em que se encontra, sobretudo o
isolamento provocado pela distância das origens e pela estranheza de uma língua
que não é a sua. O problema da língua, aliás, começa por ser sondado logo na
primeira secção.
A frequência de uma residência literária na República Checa é,
pois, o mote que obriga à adaptação, ao relacionamento, ao encontro de uma
força de conjunto que o isolamento intimida. O segundo aspecto marcante é o de
um tom aparentemente esquivo ou elíptico que certos poemas inspiram apesar e
para lá da sua dimensão explicativa, tal como o erotismo, mais ou menos velado,
que alguns versos alcançam com impressionante inteligência sedutora. O poema
Cidade Termal seria óptimo exemplo, mas este outro merece-me especial
referência por haver nele algo de extraordinário, tanto em termos sintácticos
como semânticos, na visão de conjunto:
MEDIR O PULSO À PALAVRA
comíamos o corpo com as palavras na terra
dizíamos a terra com o corpo na palavra
metíamos as mãos no tempo e a terra no corpo
tirávamos palavras do corpo para a terra
e semeávamos a palavra dada ao corpo
alimentávamos a terra enquanto era tempo
e servíamos de corpo à terra sem palavras
escrevíamos como se enterrássemos um relógio
de corda e aguardássemos que desse frutos
para vender ou trocar por mais tempo juntos
sentimos o corpo programado
para se desligar num tempo médio
na equidistância do corpo ao silêncio
Muito mais refreados em termos rítmicos e imagéticos, os
restantes poemas (à excepção de Chave Dicotómica) distanciam-se deste na forma,
mas partilham com ele uma ética que a relação aqui estabelecida entre os
vocábulos corpo, palavra e terra permite estipular. Turismo de Guerra revela um
olhar lúcido, talvez demasiado lúcido, sobre os desígnios da humanidade, não
sendo necessariamente candente sobre a situação do homem dito civilizado —
«mostram-nos o quarto de um rei / de um monge de uma prostituta famosa / e
pensamos na nossa cama inútil» (p. 32) —, deixa no ar a fina
ironia do tempo que passa por nós enquanto nós nos ocupamos das coisas banais
que, afinal, são exactamente aquelas que asseguram um certo equilíbrio existencial:
«fazemos isto em vez de nos matarmos uns aos outros» (p. 26). Há aqui um
movimento que não é óbvio daquele que se afasta das raízes para que possa
ver-se melhor no encontro com o essencial, sendo que o “eu” aparece permanentemente sufocado pela presença do "nós". No fundo, nunca estamos
totalmente isolados. Somos sempre uns entre outros, e essa é a única forma de nos
descobrimos.
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