Andou por aí aceso debate subordinado ao tema “vale a
pena ler livros novos?”. Vale. Quem tiver dúvidas, pode começar por aqui: Um
Bárbaro em Casa (Língua Morta, Agosto de 2014), de Frederico Pedreira (n.
1983). Não é livro perfeito (qual é?), não tem a consistência dos clássicos
(nem a tal se propõe, se é que propõe alguma coisa), falta-lhe profundidade
reflexiva (ainda bem). Mas é livro que diverte e inquieta em doses quase
excessivas, no limite da overdose, ao mesmo tempo que tenta equilibrar-se no
traço descontínuo da experiência. Aparentemente, trata-se de um livro de
contos. Sete, para ser preciso. Mas há entre os textos coligidos um elo que nos
permite olhar para Um Bárbaro em Casa como algo mais do que uma colectânea de
contos. Esse elo é, desde logo, a voz persistente do narrador, um sujeito que
por vezes nos parece desequilibrado, noutras circunstâncias autêntico como só
os cínicos puros logram ser, em certas ocasiões tão intragável como inspirador.
O olhar que lança sobre si próprio não é menos crítico ou implacável do que o
olhar que lança sobre os outros e o mundo que o rodeia, bebe muito, usa e abusa
de uma linguagem rude, deixa-nos constantemente na dúvida sobre a mise-en-scène
adoptada para a representação das suas histórias. Têm todas elas nome ou
diminutivo de mulher (Tota, Hanna, Jasmine, Ivanna, Martina, Mel, Filipa),
ocorrem em cidades europeias que parecem corresponder a estádios do desenvolvimento do narrador (Reykjavík, Porto, Lisboa, Londres), transitam da
tenda para a rua, desta para os bares, daqui para os ocasos da noite,
atravessam ocupações medíocres, aventuram-se nas esquinas da embriaguez com
muito sexo frustrado e relações fracassadas. Este bárbaro é, como costuma
dizer-se, um anti-herói, sendo possível vislumbrar nas suas vivências vertiginosas algo de geracional que é a encenação do maldito. Descrevem-se
situações repletas de pormenores abjectos, acções e gestos caricatos, usa-se a
língua como um instrumento cortante para provocar sensações desconfortáveis.
Tudo isto, como é óbvio, pode ser montado como um lego, adquirindo especial
interesse quando no texto se intrometem as dúvidas do narrador sobre o seu
próprio discurso: «Saí do bar a correr e depois de alguns quilómetros fui
sentar-me numas rochas que ficavam perto da crispação nebulosa do mar.
Nebulosa? Ah, poeta romântico, escritor maldito… Não permitas que te fintem,
não deixes escapar o teu livro negro pela cueca. Um dia destes um varredor to
apanha e bota no lixo» (p. 23) Um outro exemplo: «O seu avô morreu. Eu
arrastava estas palavras pelo corredor, sem encontrar uma saída plausível (não
é arroto metafísico), arrastava-as com a indiferença de quem se habitua aos
poucos a um porta-chaves tenebroso que lhe foi oferecido» (p. 102) Como
interpretar esta denúncia recorrente das artimanhas do texto senão pressupondo
uma segurança, uma consciência de si, que permite ao autor detectar e evitar o
sentimentalismo sensacionalista e o “arroto metafísico”? São sinais de uma
firmeza na prosa que é raro encontrar, mais ainda num autor tão jovem. Sinais que
não devem, porém, distrair-nos de algo substancial que extravasa a
aparência formal da narrativa. Estando todos os contos marcados por relações
ambivalentes entre o narrador e as mulheres que se lhe atravessam pelo caminho,
ou aquelas contra as quais ele embate como que por acidente e desastrosa condução
(autores como Fante e Bukowski ecoam a espaços), o autor não se furta à emoção,
sendo por vezes dilacerante o modo como essa emoção irrompe do caos sensitivo.
Nem tudo é pele nestes contos, embora tudo se exerça à flor da pele. A morte do
avô no conto Martina é um desses momentos, capaz de negar «a tristeza de
bate-chapas da escrita» (p. 95) deslocando-nos da notícia melancólica para o frenesim
da vida nocturna na 24 de Julho. Outro momento altamente emotivo é-nos oferecido
no último conto, estádio derradeiro de uma espécie de queda na realidade,
quando o narrador se vê na contingência de tomar nos braços a “educação” de uma
criança órfã de mãe toxicodependente: «não deixes que o amor te escangalhe o
voo, as mulheres jogam em planos ínfimos para nos foderem a vida, cheira-lhes
só o perfume e afasta-te, a tua mãe morreu e eu estou aqui contigo» (p. 153).
Palavras nada convencionais, de uma dureza só possível em quem exibe
na testa as cicatrizes de várias cabeçadas dadas na parede. Digo na parede para
não dizer muro de lamentações, pois nenhum lamento ressoa nestes contos. Antes
pelo contrário, são textos afirmativos de situações porventura lamentáveis mas
que não inspiram lamentos. Momentos de aprendizagem no traço descontínuo da
experiência.
6 comentários:
Nem sabia que tinha sido debatida uma tontaria dessas. Dizer-se que não vale a pena ler novos livros é o equivalente a achar-se que o mundo acabou.
Pacheco Pereira dixit: http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/vale-a-pena-ler-livros-novos-1676273
Aind não li, mas está na lista.
Aconselho, vivamente, "Neófitos", de Alexandre Sarrazola (Averno, 2014). É um livro que me parece estar (tendo em conta tudo aquilo que por aí lí) nos antípodas deste "Um Bárbaro em Casa".
Abraço
Fui ler. Parte de um conceito em que não acredito, que é o "património fundamental da literatura". Aliás, o único livro que nos últimos anos senti como uma absoluta perda de tempo disponível para ler outros foi o Ulisses (suponho que seja um dos pilares desse pretenso património fundamental da literatura.
Eu gostei muito do "Ulisses", apesar de ter sido um desafio tremendo (ainda mais na tradução brasileira). E quero lê-lo novamente na versão portuguesa. No original seria incapaz. Foi dos primeiros livros sobre o qual escrevi. :-)
Manuel, obrigado pela sugestão. Ando a ler um do Paulo da Costa Domingos que saiu na Companhia, os três ensaios sobre poesia do Barrento, o novo romance do Tavares e os 74 poemas do Cinatti. Também ando às voltas com umas coisas menos recentes do Cabrita. E acabei ontem outro do Tavares, uma espécie de tragédia grega do séc XXI: "Os Velhos Também Querem Viver".
Saúde,
75
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