Uma das melhores notícias que 2014 nos trouxe foi a recuperação da poesia de Ruy Cinatti (Londres, 1915 – Lisboa, 1986) para os escaparates, ainda que pela mão de uma pequena editora com distribuição rígida e, por consequência, com tiragens limitadas. Dei aqui conta da publicação de Corpo Santo (Averno, Julho de 2014), antologia de poemas policopiados em folhas volantes que Cinatti distribuía pelos cafés de Lisboa na segunda metade da década de 1970. Cabe agora referir os 75 Poemas (idem, Outubro de 2014) coligidos por Manuel de Freitas a partir de uma recolha pessoal com origem no corpus do autor de Memória Descritiva (1971).
Contemporâneo dos mais
importantes nomes da poesia portuguesa do século XX, Ruy Cinatti foi um dos
fundadores, com Tomaz Kim (Lobito, 1915 – Lisboa, 1967) e José Blanc de
Portugal (Lisboa, 1914 – 2000), dos Cadernos de Poesia. O primeiro fascículo
dos Cadernos, onde era possível vislumbrar tanto uma resposta informal à continuada
influência presencista como uma alternativa de ascendência católica ao realismo
social que então impunha os seus valores estéticos, ocorreu em 1940, sendo do
ano seguinte o primeiro livro de poemas de Ruy Cinatti: Nós Não Somos Deste
Mundo. A antologia de Manuel de Freitas abre, porém, com um texto cuja primeira
edição data de 1936. Trata-se do profético conto Ossobó, sobre um pássaro da
ilha do Príncipe que em tudo nos lembra, e por isso o digo profético, o
percurso poético e existencial, porque ambos estão intimamente ligados, de
Cinatti.
No Ossobó reconhecemos uma excepcional inquietude, tem os seus
companheiros mas isola-se, gosta de ver tudo, tem um canto que parece alegre,
mas povoado de recordações, anda de vale em vale preso ao seu destino: «Ossobó
continua no seu canto triste e suplicante; meneia a cabeça em direcções
impostas, e os seus olhos pequeninos não se desviam dum tronco meio apodrecido
que ali estava» (p. 11). Nesta fábula, onde a alegria da vida no seio da
floresta contrasta com a queda do fruto podre e a ameaça das cobras
traiçoeiras, vislumbramos já o prenúncio de uma poesia que ter-se-á imposto
ainda antes de ser palavra escrita, porventura quando o poeta perdeu a mãe e
ficou aos cuidados do avô paterno depois do pai partir para os EUA, ou quando
após o regresso a Portugal o pai se desentendeu com o filho e o colocou fora de
casa, dando origem a uma peregrinação imparável como a do pássaro qua anda de
vale em vale a tentar ver tudo o que há para ver e oferecendo o seu canto nostálgico
ao mundo.
Vida e poesia ligam-se aqui com uma naturalidade
desarmante. Talvez por isso devamos sublinhar que, de um ponto de vista
meramente historiográfico, esta poesia não é tão devedora do modernismo como possa ser
das primeiras experiências surrealistas levadas a cabo por António Pedro (Cidade
da Praia, 1909 – Caminha, 1966) e Jorge de Sena (Lisboa, 1919 – Santa Bárbara,
1978). Note-se que estamos a falar, em qualquer um destes casos, de vozes singularíssimas,
singularíssimas porque não cederam à submissão gregária nem buscaram na poesia nada
que não fosse expressão viva de uma condição existencial.
Além dos livros, Cinatti publicava as folhas volantes, publicava em jornais e
revistas, escrevia nas toalhas de mesa dos restaurantes. Todo esse espólio
reflecte uma ligação da palavra escrita à vida que torna ambas indissociáveis,
sendo notório o informalismo estético mesmo quando, em termos
formais, o poema se aproxima de estruturas tradicionais. Tal como a vida, o
poema pode ser tudo, pode assumir todas as formas, não recusando nenhuma delas.
No posfácio, Manuel de Freitas aponta esta singularidade destacando «a
importância crucial e fundadora da solidão» (p. 112) nesta obra. Talvez seja
este o preço a pagar quando se assume a vida numa criação literária.
Porém, a
solidão em Cinatti nem sempre aparece (talvez mesmo raramente apareça) como
condição última do ser humano na terra. Esta solidão não repercute o exílio
político e intelectual, faz antes ressoar o isolamento daquele que se afasta
para ver melhor, para não perder de vista, é quase metodológica. Como o
cientista que se embrenha na floresta para melhor compreendê-la, o poeta
embrenha-se na sociedade, mistura-se, abandona-se, anda entre as pessoas e é
entre elas que retira a luz (sombria) do poema. «Deixem-no só, / Sozinho, /
Ao bebedor de estrelas» (p. 19) — eis a súplica daquele que se recolhe e no
recolhimento chega à claridade. Assim remata o Exorcismo: «Perdida voz eu te
procuro / Junto dos outros. / Oiro descoberto, eu te procuro / Na solidão
imensa que nos cerca» (p. 22).
É neste modo fundador de sentir a religião (junto dos outros)
que melhor compreendemos o recolhimento do poeta, afectado pelos
males do mundo como qualquer outro, carente de luz, afastado dos seus paraísos
pessoais («Paraíso / é o encontro» - p. 31), perdidos algures na distância
geográfica do tempo, fazendo da ironia arma contra a saudade, fazendo da
saudade arma contra o status quo. Dois poemas breves, curiosamente com o mesmo
título, apesar de distantes no tempo, servem de exemplo para este lugar
estranho onde religião e política se tocam na pele do poema:
A PEQUENA ANGÚSTIA
O que Portugal
poderia ser
se todos os portugueses emigrassem…
— Pé de gazela
na lua.
Um desejo adusto fora d’uso.
Um lírio.
Seria livre.
Ilimitado,
como nuvem humilde
quando se dissolve.
O que Portugal
poderia ser
se todos os portugueses regressassem…
A pergunta tenta como osso
debaixo da carne.
22.10.60
do livro Borda d’Alma (1970)
A PEQUENA ANGÚSTIA
Mais perto de mim são as estrelas
neste jardim,
do que os homens sentados a meu lado.
As estrelas brilham.
Os homens falam
lá entre eles.
Não escutam silêncio
os homens que falam
neste jardim.
As estrelas falam
perto de mim.
do livro Conversa de Rotina (1973)
Introspecção? Sonho? A solidão do errante é a sua
inquietude, a angústia que se intromete entre si e os outros, é necessidade de
recolhimento e de afastamento para fora do mundo («Hei-de ser, como não fui, /
um homem fora do mundo», p. 72). Nómada incansável, o poeta é, pois, como o
pássaro que anda de vale em vale na floresta. Incorporou as asas do ossobó e partiu para parte incerta, o seu prosaísmo afirma-se quando entre
os homens se mistura para entre eles dizer não me revejo nesta condição, afastado da claridade essencial das estrelas e da música silenciosa do
céu estrelado. Esta relação com a natureza pesa na poesia de Ruy Cinatti como
um Deus mais complexo do que o catolicismo assumido pode explicar, não cinge,
tal como na poesia, nenhuma formulação congelada e cristalizada nos seus
próprios preceitos. Abre-se ao mundo através de uma inteligência que é
libertação, para logo se fechar na simplicidade do
FACTO
Tenho aprendido muito convosco, ó amigos homens,
a gostar de aventuras e, sobretudo,
mulheres ao alto, ao lado, ao fundo
e, adormecido, sonhar fora do mundo.
7.12.76
Passar ao lado de uma poesia tão plena, deixando na
penumbra este que foi, sem margem para dúvidas, um dos nossos maiores poetas,
será um crime de lesa-poesia. Pude começar a prestar-lhe outra atenção depois
do n.º 39 da revista LER, corria o Verão de 1997. Desde então, trago Cinatti
entre os poetas que mais admiro. Corpo Santo e 75 Poemas são excelentes
pretextos para a ele regressar e, no regresso, novos leitores encontrar que se
interessem mais pelo silêncio das estrelas do que pelo fragor do estrelato.
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