sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

CONTRIBUTO PARA UMA NOVA TESE SOBRE A TORTURA

Chego através do Provas de Contacto ao texto mais sensaborão e mal escrito de 2014. A deputada constitucionalista pode estar cheia de boas intenções, mas as boas intenções não são, definitivamente, generosas para com a literatura. Este Sair do corpo para entrar nele, presumo que no próprio corpo, só não está ao nível de um Prometo Falhar porque o segundo tem mais caracteres. Diria mesmo que depois dos temores de Assunção Esteves, meritíssima Presidente da Assembleia da República Portuguesa, quanto ao, e passo a citar, “inconseguimento de eu estar num centro de decisão fundamental a que possa corresponder uma espécie de nível social frustracional derivado da crise”, fim de citação, o grande momento do ano de 2014 quanto a tontices proferidas pelas elites do poder político é a hesitação de Isabel Moreira entre o orgasmo e a escrita que, logo a começar, nos deixa banzados com um experimentalismo sintático de cortar o fôlego:

Acordou de manhã no final do ano de 2014. Esticou o corpo e sentiu uma dor.
Recordou no toque a que sabe ter direito essa dor.
Que é coletiva.

Eduquem-se hermeneutas capazes de decifrar, que eu mal me posso conter com o que vem logo a seguir. Uma novíssima tese sobre a condição feminina diz-nos que ser mulher está presente nos “dedos matinais”. Há os dedos vesperais, os dedos nocturnos, os dedos vespertinos, os dedos diurnais, os dedos do meio-dia. Ser mulher está nos dedos matinais:

Sente-se ameaçada porque o seu contrato de trabalho não é renovável automaticamente, mas não se sente ameaçada, na sua vida, por ser mulher, essa condição tão presente nos seus dedos matinais.
Abela, uma rapariga asiática, puxa-lhe os dedos de dentro para fora, recorda-lhe que no mesmo dia daquele prazer solitário, a vida dela vale menos do que a vida do seu irmão e que está em risco de morte por falta de comida.

Estes dedos matinais têm particularidades, são dedos que que se puxam de dentro para fora. Nada de extraordinário se repararmos que em meia dúzia de linhas mal escritas temos já uma síntese do mundo laboral (“contrato de trabalho não é renovável”), da condição feminina (a cena dos dedos) e das assimetrias sociais no mundo (a vida dela vale menos do que a do irmão, alguém está em risco de morte porque tem fome). Ora, para resolver a fome nada melhor do que, lá está, uns marotos dedos matinais:

Acordou de manhã e agora tenta fazer explodir atomicamente estas paisagens, quer tocar-se e vir-se, sem culpas, essa coisa de que já se livrou, essa coisa que a religião faz às crianças, às meninas – “não te toques” – esse abuso de menores, quer apressar o alívio de um orgasmo, mas tem um texto lixado para escrever e puxa os dedos para o umbigo.

Camandro! Realmente, isto de ter textos para escrever quando se tem fome, contractos de trabalho não renováveis, vidas por um fio e desejos por satisfazer... é fodido. Portanto, toca de refrear desejos e meter mãos ao serviço. Os dedos matinais que se recolham ao umbigo e aí se submetam às mãos, porventura aurorais, para a grande tarefa do dia. Nada de masturbação, nada de onanismo, nada de puxar os dedos para zonas tentadoras (a religião não faria melhor do que a consciência). A religião pode dizer não te toques, mas a política fala mais alto: toca-te, mas não agora. Espera um pouco, primeiro…

…escreve, muda, nomes e nomes de mulheres dos dias de hoje, limitadas à sua função reprodutora, assassinadas e violadas em teatros de guerra, sangue pela “honra” dos homens, apedrejadas nos países muçulmanos dominados pelas fações extremistas do islão, subjugadas a um projeto de aniquilamento, de apagamento.

Assunto sério. Ou nem por isso, tal a parvoeira que se segue:

Acordou de manhã e agora faz regressar os dedos aos seus lábios, não quer escrever o texto, quer sentir os seus lábios, interiores e exteriores, o seu clitóris, gozar desta integridade. Mas no deslize dos dedos a humidade parece vir dos olhos, dos olhos das meninas africanas vítimas de excisão e de infibulação, tantas vezes por parte das próprias mães, também elas vítimas do sistema que lhes diz que é assim e porque é assim negam a vida, ou o corpo ou a sexualidade futura a estas crianças.

Não se decide, continua a hesitar entre o texto e a masturbação, a lubrificação vaginal e o fluido lacrimal, anda ali com os dedos matinais entre as pálpebras e o aparelho reprodutor feminino (nota-se uma imperdoável ausência de referências às Glândulas de Bartholin), anda com a cabeça entre a vagina e os problemas do mundo. Devo confessar que o mesmo me sucede todas as manhãs durante a hora do banho, só não tenho vagina. O hiper-realismo da prosa seria, por isso, por isto e por aquilo louvável não fosse o que se segue (os sublinhados são meus e, quase aposto, do João César das Neves):

Acordou de manhã pensando que talvez fosse fácil uma masturbação e partir para o trabalho, mas tinha um texto para escrever, e trabalha porque teve acesso à educação, e retira o indicador de si, o mesmo que dizia as letras por baixo e gritam-lhe no quarto as raparigas sem saúde nem educação, as mulheres para quem ser mãe não é bênção, nem opção, nem escolha, mas um risco. Um risco resultante de uma ação sobre um mero objeto de desejo e de satisfação masculina e proprietária.
É de continuar a tirar o dedo, porque não estamos a falar de um mundo distante, que ainda que o fosse seria vizinho, porque não há sofrimento ao quilómetro; estamos a falar do nosso bairro, da nossa cidade, do nosso país, no nosso universo familiar, onde as mulheres sofrem maus-tratos conjugais, psicológicos e sexuais, estamos a dizer (estou a dizer) que a família é um local de risco para se existir. Mesmo aqui, onde não é o véu que nos esconde nem o casamento forçado que nos força.

Devo esclarecer, antes de mais, que a minha família não é para aqui chamada. Mas uma pergunta impõe-se: como pode alguém masturbar-se com tanta desgraça na cabeça? Segue-se um fastidioso parágrafo sobre questões técnicas, escrito com os dedos dos pés.
Acordar então e fazer dos dedos uma arma simbólica para a explosão de prazer e de direitos que aqui se têm e ali, mesmo ali, o silêncio esconde numa dor que tem de ser coletiva. Porque é coletiva.
Retira o indicador de si, o mesmo que dizia as letras por baixo (trata-se, certamente, de uma liberdade poética esta coisa do indicador dizer letras por baixo), continua a tirar o dedo, faz dos dedos uma arma simbólica para a explosão de prazer… O texto ia bem no seu naturalismo erótico com claras preocupações sociais e políticas, ligeira mas agradável prosa de homenagem a um neo-realismo tardio de inclinação feminista. Resvalou tudo para a javardice quando do indicador passamos para o dedo e deste para o seu plural. Ora, um dedo ainda se aguenta. Agora os dedos todos é uma clara hiperbolização da simbolística revolucionária que hesita entre o orgasmo e a produção de chachadas destas. Tem um mérito esta prosa: de tanto ouvirmos em acordar de manhã apetece-nos adormecer, voltar a dormir e esquecer mais este triste episódio oferecido pela intelligentsia nacional.

8 comentários:

Jorge Melícias disse...

Entre a galhofa das citações e o humor dos teus apartes, passei um bom bocado. Nem foram precisos dedos.

Anónimo disse...

Um punho de prosa socialista.

hmbf disse...

Com os negritos, podemos fazer o

Poema dos Dedos

ser mulher, essa condição tão presente nos seus dedos matinais

puxa-lhe os dedos de dentro para fora
puxa os dedos para o umbigo
faz regressar os dedos aos seus lábios
no deslize dos dedos a humidade parece vir dos olhos
e retira o indicador de si, o mesmo que dizia as letras por baixo

É de continuar a tirar o dedo
fazer dos dedos uma arma simbólica para a explosão de prazer

Joaquim Moedas Duarte disse...


É a comichão dos dedos
Que desvenda tais segredos.

Por isso

De tanto me rir
estou-me quase a vir.

[ E a bater uma punheta
Fiz este poema da treta!]


hmbf disse...

Magnífico poema. Diria mesmo ao nível. Os comentários ao texto da deputada também são bons, nomeadamente aquele que diz, se bem percebi, que o que há de mais humano em nós é a intimidade da masturbação. Razão tinham os cínicos quando se masturbavam em público. Tivessem vingado, a História seria outra.

Cuca, a Pirata disse...

A deputada assina o texto também na qualidade de escritora. É formidável o nível de inconseguimento.

hmbf disse...

Escritora constitucionalista, o que explica muita coisa.

jpt disse...

nem sei o que faça com os dedos