Dois livros recentes de Gonçalo M. Tavares (n. 1970)
ajudam-nos a repensar um edifício literário que vem sendo construído desde
Livro da Dança (2001). No final de cada um deles, uma espécie de planta
distribui por várias secções os famigerados cadernos do autor. Os Velhos Também
Querem Viver (Caminho, Outubro de 2014) aparece ao lado de Histórias Falsas na
secção Estudos Clássicos. Esta obsessão com a organização de uma obra mais
caótica do que aparenta é reveladora de uma intenção arquitectónica sobre o
texto, o qual deixa de ser organizado segundo padrões clássicos (romance,
conto, teatro, poesia) para assumir novas designações (O Reino, O Bairro,
Enciclopédia, Investigações…), mais pessoais e enigmáticas, que, na
realidade, aproximam os géneros através de uma teia onde tudo se
interliga. Toda a obra de Gonçalo M. Tavares, na sua diversidade, acaba por estar interligada, não sendo
possível, ou sendo desaconselhável, lê-la de outra forma, interligada por uma
espécie de linha poético-filosófica transversal a todos os géneros,
aproximem-se estes mais da ficção ou da poesia, desta ou da filosofia.
Os Velhos
Também Querem Viver transporta a tragédia clássica para tempo e espaço
modernos, transporte no tempo e deslocação geográfica da tragédia Alceste, de Eurípedes,
com variações formais onde se acrescenta ao texto original os elementos de uma
actualidade meramente paisagística. Podemos dizê-lo assim porque, no essencial, o
conflito humano mantém-se, à volta do homem a paisagem transforma-se mas o que
há nele de verdadeiramente central permanece com uma perenidade assustadora. A
tragédia, dedicada a Hélia Correia, autora de um extraordinário livro de poemas,
intitulado A Terceira Miséria, onde estas questões já se colocavam sob prisma
similar, tem agora por cenário a Sarajevo da década de 1990 em pleno conflito
armado. Admeto é atingido por um sniper, mas pode ser salvo se alguém morrer
por ele. Todos se recusam a trocar a sua vida pela vida de Admeto, excepto a sua mulher. Alceste, a mulher de Admeto, morre
para ele ficar vivo, mas a consciência de Admeto não se conforma com a perda
nem com as razões de seu pai, Feres, ter recusado dar a vida pelo filho. Era um
homem velho, podia ter morrido para que os mais novos continuassem vivos. Feres
defende-se: «Se os novos gostam de viver, os velhos também. E por que razão a vida de
um velho valeria menos do que a vida de alguém que agora começa? (…) Não podes
pensar que um velho é metade de um homem; um velho como eu é pelo menos dois
homens, eu diria, pela experiência, pela sabedoria» (p. 56). O discurso é objectivo,
nada tem de paradoxal, mas coloca à prova a resistência das teses. É esta
dimensão inspectiva o que mais fascina nos textos de Gonçalo M. Tavares, textos
de uma intensidade poética que muita poesia não consegue ter. Algo semelhante se
observa no romance
Uma Menina Está Perdida No Seu Século À Procura do Pai
(Porto Editora, Novembro de 2014).
Neste romance, uma menina com trissomia 21 está perdida no centro de uma cidade
alemã no século XXI (o "seu século"). É encontrada por um homem que a vai ajudar a procurar o pai. A primeira
palavra que nos surge com estrondo é a palavra “deficiente”. A deficiência tem aqui o lugar do contrapoder. Ela opõe-se não só
à normalidade, a uma suposta normalidade, como também à lógica, à ordem, ao Organon
aristotélico que o autor de Uma Viagem à Índia testa recorrentemente e inverte e procura sabotar e experiencia. Marius e Hanna, as personagens centrais do
romance, vão cruzar-se ao longo de quase duzentas páginas com indivíduos cujas características
são objectivamente escolhidas e pensadas para uma inversão valorativa que confronta
o leitor com a loucura (não exclusivamente mental, mas também a partir de
anomalias físicas) das pessoas aparentemente normais e a naturalidade de uma
menina com trissomia 21 que, limitada na sua autonomia e nas suas capacidades
comunicacionais, garante uma certa espontaneidade aos desequilíbrios do
pensamento: «Da janela da carruagem, vimos o fumo preto que saía de uma fábrica. Hanna disse que era bonito. E de um certo ponto de vista era: se olhássemos para a fábrica como simples produtora de fumo. Era provavelmente assim que Hanna a via» (p. 175). Reminiscência das fábricas de morte nazis, esta passagem sublinha de um modo acutilante a relação entre a realidade e o ponto de vista. Sobrevive uma sem o outro? Hanna, a realidade, sobreviveria sem Marius, o ponto de vista? Hanna tem consigo um conjunto de fichas que estabelecem um programa
de aprendizagem para pessoas com deficiência mental. Fascinante, a forma como
Marius se questiona sobre as dificuldades de uma pessoa normal para responder positivamente a algumas daquelas tarefas. A exigência dos
desafios testa a normalidade, daí que o romance se desenvolva na base de
conflitos entre o certo e o incerto, a verdade e a mentira, a lógica
e o caos, a exactidão e a subjectividade, a matemática e o acidente. Mas estas
linhas, que reflectem um pouco do que se vem passando no conjunto da obra de
Gonçalo M. Tavares, não seriam suficientemente cativantes se não fosse
inesgotável a capacidade do autor para imaginar situações onde as mesmas são (re)desenhadas
com espantosa coerência e minuciosidade. A título de exemplo, digamos que
quando uma personagem procura um Hotel num livro de Gonçalo M. Tavares ela não
vai encontrar apenas um sítio onde dormir. Ela vai encontrar um Hotel onde cada
quarto tem o nome de um campo de concentração nazi, um Hotel cuja arquitectura
reproduz a distribuição desses mesmos campos no espaço europeu. Estes elementos
parabólicos, acompanhados de personagens aporéticas e de uma escrita onde a
própria pessoa do narrador se confunde, sem, no entanto, confundir minimamente
o leitor, fazem de cada um destes cadernos estádios de desenvolvimento de uma
poética geral, uma poética com um princípio fundador: testar a tese.
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