um filho, a meias entre cabra e galo apaixonados, entrou pelo mar adentro. diz quem viu que batia as patas na água com força, mas tão pouco se embrenhou e já só a crista se via. em terra, por maldade, pôs-se uma galinha a cacarejar de aviso. quando os pais do jovem acorreram ao local, não se via senão uma ondulação estranha que talvez indicasse a barriga cheia do mar. a cabra prostrou-se na areia e emudeceu. o galo fez o mesmo passados uns minutos. depois, o filho voltou sem custo e surpreso, mas os pais nunca recuperaram da vergonha.
valter hugo mãe (n. 1971), in Livro de Maldições ( 2006). Afirmado e popularizado como
romancista, valter hugo mãe foi durante muitos anos uma das figuras mais
acutilantes e controversas da poesia portuguesa. O seu trabalho enquanto editor,
primeiro nas Quasi edições, depois, e mais efemeramente, na Objecto Cardíaco, colheram
ódios e paixões. Em paralelo, uma poesia pulsátil, arraigada à metáfora e repleta
de imagens heterodoxas, numa época em que o discurso poético se aproximou da
narratividade mais ou menos confessional e descritiva, fizeram da
obra coligida em Contabilidade (2010) um exemplo de obstinação estilística. Contra
as muralhas do apontamento irónico e humorístico, da quotidianidade melancólica
e entediada, títulos como a cobrição das filhas (2001) ou pornografia erudita
(2007) propuseram uma linguagem desbragada de sentidos e emoções liquefeitos no
poder sugestivo das imagens e da musicalidade verbal.
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