terça-feira, 16 de dezembro de 2014

sala de leitura baixa

 
tirou da mala os dicionários de grego deixou
na estante uma flor de palha cor-de-laranja
que a irmã lhe tinha dado
mais seis imagens de w. b. yeats de perfil
uma fotografia tirada no ribatejo em 1976:
homens embarbelados em varandas
para a passagem de um bezerro desgarrado
a que mais tarde se juntaria
a prometida peça do xadrez de lewis
(o peão judicioso munido de escudo
e semblante solene de lémure apreensivo)
 
quando lhe ia falar disso apanhou-se a dizer
não fthonos mas coisa triste com
rabo e cornos de cinza
à maneira dos ibéricos, dos portugueses
acrescentando que não seria a isso
que ia sucumbir porque começara por notar
que por duração é sempre possível
iludir e enrolar aquele peso
em manuais vulgarmente designado
por "sentimento trágico"
 
de uma destas salas poderás
observar a perfeita arquitectura do anjo
posto no telhado não à maneira dos gatos
antes elevando-se acima dos edifícios
por sobre as janelas ocre
 
enquadrado no rigor do seu cinzento
também ele está seguro do seu trompete
mas encontra-se impossibilitado
de qualquer hipótese de música
 
e porque ele não pia tu podes
descer à câmara da lower reading room
com uma mão estilhaçada envolta em gesso
deposta como um objecto que tens de carregar
 
e registar em protesto
que pararás de te debater
e de fazer barulho como é teu costume
 
rendendo-te temporariamente à evidência da falta
da caneta certa para escrever isto
ou de querer uma língua que seja a que sobre
ou de sequer sermos alguma vez
redutíveis à escolha prudente
de uma mais apropriada fala
 
 

Tatiana Faia (n. 1986), in Teatro de Rua (2013). A estreia em 2011 com Lugano (Artefacto) sublinhou um trabalho poético que vinha sendo desenvolvido em publicações colectivas, trabalho esse alicerçado em estudos clássicos com natural influência sobre esta poesia. As referências são múltiplas e variadas, dos gregos aos romanos, destes à tradição judaica, mas não vedam a intromissão de elementos contemporâneos, por vezes até populares, como uma canção de Chet Baker ou a inscrição numa linguagem puramente coloquial. No entanto, a erudição pesa invariavelmente sobre versos mais interessados na exterioridade, ou na relação do eu com o exterior, do que na exploração dos sentimentos íntimos e na expressão lírica dessa interioridade. Este é, até ver, talvez o aspecto mais singular da poesia de Tatiana Faia, a insistência no que parece distante e afastado do eu, uma espécie de fuga obstinada do lirismo onde a figura do sujeito poético é quase sempre um outro na posição de objecto observável.

1 comentário:

manuel a. domingos disse...

"Teatro de Rua" (do lado esquerdo, 2013)