Dia e noite
as notícias estão chegando
telegráficas e sensacionais
dos confins do mundo.
— Sobre destroços de casas e de
árvores
crianças chinesas boiando à
deriva
na corrente do rio Amarelo
transbordado!
— Poliomielite grassando
nas províncias argentinas!
— Socorro tratamento urgente
para o menino das montanhas dos
Abruzos
perdendo a vista pouco a pouco!
— Agasalhos abrigos alimentos
para as crianças húngaras
foragidas
do esmagamento e das labaredas
soviéticas!
Dia e noite
as agências dos jornais estão telegrafando
a rádio espalhando o alarme.
Organização Mundial da Saúde
Cruz Vermelha
Cáritas
Exército de Salvação
estão providenciando
estão salvando as crianças.
Quermesses
rifas
leilões
tômbolas
a favor das crianças
chinesas
argentinas
italianas
húngaras
sob o patrocínio de damas importantes
louvadas depois nas revistas ilustradas
com fotografias em ectacrome evidenciando
colares e cruzes
fulgindo nos decotes.
Há também as crianças pobres
do povo das nossas Ilhas
mas é um caso apenas
sem importância nenhuma
e ninguém sabe
ninguém dá por isso.
Temos também aqui
crianças sem roupa
sem lar e sem pão
crianças tuberculosas
sifilíticas
aleijadas
paralíticas
cegas
leprosas
sem remédios
sem escolas
sem brinquedos
levando cargas à cabeça
por caminhos longos e ásperos
que o rastro do povo deixou marcados
na terra endurecida e no basalto
dos descampados e dos montes
ignoradas crianças
dos bairros promíscuos
dos cais e das praias
da gafaria do Barbasco
crianças nuas rurais
(ficam olhando dos areais para o
mar
e nas minúsculas manchas ao
largo
sabem distinguir um por um
os botes familiares).
Temos também as crianças
pobres das Ilhas
mas é um caso apenas
sem importância nenhuma
gota de água caída
no oceano vasto das crianças
chinesas
argentinas
italianas
húngaras
Ninguém sabe
ninguém dá por isso
a rádio não fala
os jornais não dizem
ninguém telegrafa.
Jorge Barbosa (n. 1902 - m. 1971), in Claridade, n.º 8,
1958. Natural da cidade da Praia, quando Cabo Verde era colónia portuguesa,
Jorge Barbosa estreou-se em 1935 com o livro Arquipélago. Foi um dos membros
mais importantes do movimento Claridade, reunido em torno da revista literária
e cultural com o mesmo nome. O primeiro número de Claridade data de 1936, tendo
sido responsáveis pela publicação os escritores Manuel Lopes, Baltasar Lopes da
Silva e Jorge Barbosa (ver aqui). Segundo Jorge de Sena, o grupo veio a ser «uma das
primeiras manifestações vitoriosas de uma atenção à realidade social que o
«neo-realismo» preconizaria, é certo que com outros pressupostos. A poesia de
Jorge Barbosa, menos culturalmente activa do que a obra de Baltasar Lopes, é
todavia a de um lírico simples, que evoluiu para um verismo comovido, através
do qual fixou, com invulgar contenção de tom e directa expressão desataviada, a
tragédia humana das populações cabo-verdianas».
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