segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

CRIANÇAS

 
Dia e noite
as notícias estão chegando
telegráficas e sensacionais
dos confins do mundo.
 
     — Sobre destroços de casas e de árvores
     crianças chinesas boiando à deriva
     na corrente do rio Amarelo transbordado!
 
    — Poliomielite grassando
     nas províncias argentinas!
 
     — Socorro tratamento urgente
     para o menino das montanhas dos Abruzos
     perdendo a vista pouco a pouco!
 
     — Agasalhos abrigos alimentos
     para as crianças húngaras foragidas
     do esmagamento e das labaredas soviéticas!
 
Dia e noite
as agências dos jornais estão telegrafando
a rádio espalhando o alarme.
 
Organização Mundial da Saúde
Cruz Vermelha
Cáritas
Exército de Salvação
estão providenciando
estão salvando as crianças.
 
Quermesses
rifas
leilões
tômbolas
a favor das crianças
     chinesas
     argentinas
     italianas
     húngaras
sob o patrocínio de damas importantes
louvadas depois nas revistas ilustradas
com fotografias em ectacrome evidenciando
colares e cruzes
fulgindo nos decotes.
 
Há também as crianças pobres
do povo das nossas Ilhas
mas é um caso apenas
sem importância nenhuma
e ninguém sabe
ninguém dá por isso.
 
Temos também aqui
crianças sem roupa
sem lar e sem pão
crianças tuberculosas
     sifilíticas
     aleijadas
     paralíticas
     cegas
     leprosas
sem remédios
sem escolas
sem brinquedos
levando cargas à cabeça
por caminhos longos e ásperos
que o rastro do povo deixou marcados
na terra endurecida e no basalto
dos descampados e dos montes
ignoradas crianças
dos bairros promíscuos
dos cais e das praias
da gafaria do Barbasco
crianças nuas rurais
     (ficam olhando dos areais para o mar
     e nas minúsculas manchas ao largo
     sabem distinguir um por um
     os botes familiares).
 
Temos também as crianças
pobres das Ilhas
mas é um caso apenas
sem importância nenhuma
gota de água caída
no oceano vasto das crianças
     chinesas
     argentinas
     italianas
     húngaras
 
Ninguém sabe
ninguém dá por isso
a rádio não fala
os jornais não dizem
ninguém telegrafa.
 
Jorge Barbosa (n. 1902 - m. 1971), in Claridade, n.º 8, 1958. Natural da cidade da Praia, quando Cabo Verde era colónia portuguesa, Jorge Barbosa estreou-se em 1935 com o livro Arquipélago. Foi um dos membros mais importantes do movimento Claridade, reunido em torno da revista literária e cultural com o mesmo nome. O primeiro número de Claridade data de 1936, tendo sido responsáveis pela publicação os escritores Manuel Lopes, Baltasar Lopes da Silva e Jorge Barbosa (ver aqui). Segundo Jorge de Sena, o grupo veio a ser «uma das primeiras manifestações vitoriosas de uma atenção à realidade social que o «neo-realismo» preconizaria, é certo que com outros pressupostos. A poesia de Jorge Barbosa, menos culturalmente activa do que a obra de Baltasar Lopes, é todavia a de um lírico simples, que evoluiu para um verismo comovido, através do qual fixou, com invulgar contenção de tom e directa expressão desataviada, a tragédia humana das populações cabo-verdianas».

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