Estendi o braço, apaguei a luz,
senti os seus lábios cercados de rendição.
Do meio de uma tristeza que não podia findar
abraçámo-nos e, no centro mais cego do pavor,
de novo nos encontrávamos. Mais perdidos,
mais perto, tão perto que chorávamos as mesmas lágrimas.
Vivia na rede de ruas ao alto da vila
sobre o porto. Numa casa de tinta nova
com a entrada confusa, nunca
soubemos lá ir dar.
Certas vezes tinha o rosto coberto de sangue.
Nós e a noite cortávamos de beijos a sua dor.
Primeiro o lume salta, bate nos tijolos,
destrói o fumo que sobe na chaminé.
Depois os toros estalam, abre-se o calor
para dentro da sala, a nossa pele
encontra a tua pele, esquece
a realidade: o teu pequeno emprego, o tempo
que não tens, o dédalo
sexual da situação de classe.
Por fim as chamas começam a tombar
em brasas, em cordões de cinza.
O seu rosto cintilava nos fins de tarde
em que seguíamos para nossa casa.
Mas quando tirava a samarra e abria,
um por um, os fechos do blusão,
ninguém se lembrava desse rosto, o acetilene
dos dedos corria-nos sobre o peito,
o mundo inteiro parecia incendiar-se.
Estavam envolvidos num manto,
sentados no chão de pedra, as labaredas
roubavam sombras nos seus corpos.
Nas horas de depois dos bares,
um pouco antes do amanhecer.
Um rapaz nos últimos anos da juventude.
Confirmava do amor a rápida colheita,
o cansaço tardio, a maldição
de me ter dado e ter perdido. E voltar a perder-te
quando for a tua vez de achares quem te receba,
quem te faça pagar-me, faca por faca,
o preço das trocas tão desertas dos outros amores.
Outras vezes, ao beijares os seus olhos
verás como se fecham a fugir. Dantes
temiam reabrir-se e encontrar os teus
fixos na parede, em busca doutro corpo
que não sabias quem viria a ser.
A testa de altura moderada,
o nariz rectilíneo, os olhos
cor dos ouriços vivos, o lábio inferior
tenso e sem sorrir e os cabelos
iluminados, abertos à solidão.
Vai crescendo com o dia a dia a saudade.
Os dois príncipes melancólicos
aguardam o mensageiro.
O trovador, o mar, cobre-se da segura tempestade,
canta de encontro às rochas uma exaltação.
Aprendo a viver o sofrimento da espera,
a despedida, a chegada do temível triunfo.
Duas braçadas de lenha dão para uma noite
de repouso e ouvimos um do outro
o silêncio de muitos anos de conflito.
Outras vezes a triaga do ciúme agita-se
ao vento peregrino das dunas. As jóinas
não tardam a reabrir e os cardos roxos,
ouve, os cães a ladrar enquanto chove
nesta primavera que não devia voltar.
Posso sentar-me junto de ti?
Pegar na tua mão?
Joaquim Manuel Magalhães (n. 1945), in Segredos, Sebes, Aluviões (1981). «O mais importante crítico da poesia consagrada nos anos 70-90 (...), Joaquim Manuel Magalhães (...) é, desde 1974, autor e co-autor de cerca de uma quinzena de obras de poesia (...). A orientação que nele prevalece contrasta com poetas do seu grupo de idade e colaboração por um realismo flagrante, a certo nível, de percepções urbanas, suburbanas ou de à beira-mar, e que em pormenores evocativos de certa experiência rural nortenha vai até à minúcia de um léxico regional. Este realismo fragmentário de J. M. Magalhães surpreende pela elipse, pelo microrrigor referencial nas suas relações de complexa ou conflitual coincidência, ou de focagem-desfocagem com o motivo mais plausivelmente condutor: o de breves, precários encontros-desencontros eróticos. É sensível o contraste entre a agressividade quase feroz com que estigmatiza circunstâncias mais ou menos citadinas de degradação (e o ridículo de notoriedades poéticas ou literárias) e a densa bucólica, mais ou menos erotizada e em geral erguida sobre incidências de memória infantil, que fazem de Segredos, Sebes, Aluviões um dos melhores livros da poesia actual» (A. J. Saraiva, Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa).
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