sábado, 24 de janeiro de 2015

O VISITANTE DA NOITE

É natural que o mistério alimentado em torno da identidade de B. Traven aguce o apetite pela sua obra, se bem que, entre nós, esse mistério permaneça quase incógnito. Com a publicação de O Visitante da Noite & Outros Contos (Antígona, Dezembro de 2014) os leitores portugueses têm fortes motivos para se interessarem por esta fascinante personagem. Num documentário a que temos acesso através do Youtube (aqui a primeira parte), sugere-se que a verdadeira identidade de B. Traven era Otto Feige, nascido na Polónia em 1882, filho ilegítimo de um casal alemão. No entanto, são imensos os rumores sobre as suas origens. Incluem ligações ao Kaiser Willhelm II, a um pescador norueguês ou até a pseudónimos de escritores tais como Jack London e Ambrose Bierce, mas talvez tudo seja apenas como nos diz a personagem central de O Visitante da Noite: «A minha terra era onde eu estava, e em mais parte alguma» (p. 57). A viúva daquele que hoje se julga ter sido B. Traven revelou, após a morte do escritor, ter este iniciado a sua misteriosa trajectória como Ret Marut, actor revolucionário que escreveu para a publicação anarquista Der Ziegelbrenner no início do séc. XX. Do mesmo se conhece uma novela intitulada To the Honourable Miss S… (1916). Complicações com as autoridades acabaram por exilá-lo no México, depois de uma passagem por Inglaterra onde tentou, sem sucesso, obter documentos americanos. O México será, daí em diante, o palco eleito de uma obra onde se notam as preocupações com a justiça social e as condições de vida dos povos oprimidos que marcaram a primeira encarnação. Na obra que a Antígona traz a lume, com tradução de Manuela Gomes, os índios aparecem quase sempre como personagens centrais. São onze os contos coligidos, sendo O Visitante da Noite e Macario aqueles de maior fôlego e, curiosamente, aqueles onde melhor se nota a inclinação alegórica. Experiências fantasiosas e alucinantes, propiciadas, sobretudo, pela imersão no mundo enigmático da floresta, transportam os intervenientes para situações onde o choque da descida à realidade se torna mais cruel, sendo que nessas situações consta invariavelmente um movimento de afastamento da civilização e da sua mecânica mais básica: «Viver sozinho na selva torna-nos silenciosos, embora o pensamento fervilhe» (p. 49). Porém, tudo nos parece estranhamente plausível. Isto apesar de ser possível encontrar nestes contos um humilde lenhador em diálogo - literal - com a morte enquanto partilham um peru. The Treasure of the Sierra Madre (1927), romance levado à tela por John Huston em 1948, conta-se entre os maiores sucessos de B. Traven. Também aí o que encontramos é uma transfiguração da humanidade através de uma espécie de deformação moral das personagens, deformação impelida pela ganância a partir de pontos onde a ambição excede a consciência dos factos. Esta parece ser uma das marcas essenciais do autor, ou seja, as suas personagens perdem o controlo moral sobre as suas acções. São simples e humildes, mas deixam-se levar pela ambição, pelo ódio, pela vaidade, pela doença do estatuto social, tornam-se vítimas da sua própria natureza. Há nisto uma certa desconfiança acerca das virtudes da humanidade, ou, pelo menos, uma clara negação dos méritos da sociedade. Esta aparece como corruptora do indivíduo, o qual se apresenta vulnerável, instável, frágil, volúvel, contraditório. O orgulho de um mineiro no seu relógio de bolso, o lenhador sacristão que fica a tomar conta da igreja na ausência do padre, o índio artesão que recusa o negócio de uma vida para não deixar de pôr a sua alma e as suas canções em cada um dos cestos que produz, são elementos que Traven respiga nas aldeias de camponeses índios para compor a sua manta de retalhos sobre a natureza humana, tão propensa à maldade como a solidarizar-se com o seu semelhante. Não há optimismo nem pessimismo nestas histórias, há o humano na sua essência paradoxal, ambivalente, contraditória. Mais que a verdade biográfica, o verdadeiro mistério reside na autenticidade das palavras quando discorrem sobre circunstâncias aparentemente oníricas. Há nisto uma verdade porventura impenetrável: o que nos liga, enquanto contas do rosário humano, é mais o termos experimentado viver do que o nome que se atribui a uma vida.

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