É
natural que o mistério alimentado em torno da identidade de B. Traven aguce o
apetite pela sua obra, se bem que, entre nós, esse mistério permaneça
quase incógnito. Com a publicação de O Visitante da Noite & Outros Contos
(Antígona, Dezembro de 2014) os leitores portugueses têm fortes motivos
para se interessarem por esta fascinante personagem. Num documentário a que
temos acesso através do Youtube (aqui a primeira parte), sugere-se que a
verdadeira identidade de B. Traven era Otto Feige, nascido na Polónia em 1882,
filho ilegítimo de um casal alemão. No entanto, são imensos os rumores sobre as
suas origens. Incluem ligações ao Kaiser Willhelm II, a um pescador norueguês
ou até a pseudónimos de escritores tais como Jack London e Ambrose Bierce, mas
talvez tudo seja apenas como nos diz a personagem central de O Visitante da Noite: «A
minha terra era onde eu estava, e em mais parte alguma» (p. 57). A viúva
daquele que hoje se julga ter sido B. Traven revelou, após a morte do escritor,
ter este iniciado a sua misteriosa trajectória como Ret Marut, actor revolucionário
que escreveu para a publicação anarquista Der Ziegelbrenner no início do séc.
XX. Do mesmo se conhece uma novela intitulada To the Honourable Miss S…
(1916). Complicações com as autoridades acabaram por exilá-lo no México, depois
de uma passagem por Inglaterra onde tentou, sem sucesso, obter documentos
americanos. O México será, daí em diante, o palco eleito de uma obra onde se notam as preocupações com a justiça social e as condições de vida dos povos
oprimidos que marcaram a primeira encarnação. Na obra que a Antígona traz
a lume, com tradução de Manuela Gomes, os índios aparecem quase sempre como personagens
centrais. São onze os contos coligidos, sendo O Visitante da Noite e Macario
aqueles de maior fôlego e, curiosamente, aqueles onde melhor se nota a inclinação alegórica. Experiências fantasiosas e alucinantes, propiciadas,
sobretudo, pela imersão no mundo enigmático da floresta, transportam os
intervenientes para situações onde o choque da descida à realidade se torna mais
cruel, sendo que nessas situações consta invariavelmente um movimento de afastamento
da civilização e da sua mecânica mais básica: «Viver sozinho na selva torna-nos
silenciosos, embora o pensamento fervilhe» (p. 49). Porém, tudo nos parece
estranhamente plausível. Isto apesar de ser possível encontrar nestes contos um
humilde lenhador em diálogo - literal - com a morte enquanto partilham um peru. The Treasure
of the Sierra Madre (1927), romance levado à tela por John Huston em
1948, conta-se entre os maiores sucessos de B. Traven. Também aí o que
encontramos é uma transfiguração da humanidade através de uma espécie de
deformação moral das personagens, deformação impelida pela ganância a partir de
pontos onde a ambição excede a consciência dos factos. Esta parece ser uma das
marcas essenciais do autor, ou seja, as suas personagens perdem o controlo
moral sobre as suas acções. São simples e humildes, mas deixam-se levar pela
ambição, pelo ódio, pela vaidade, pela doença do estatuto social, tornam-se
vítimas da sua própria natureza. Há nisto uma certa desconfiança acerca das
virtudes da humanidade, ou, pelo menos, uma clara negação dos méritos da sociedade.
Esta aparece como corruptora do indivíduo, o qual se apresenta vulnerável,
instável, frágil, volúvel, contraditório. O orgulho de um mineiro no seu relógio
de bolso, o lenhador sacristão que fica a tomar conta da igreja na ausência do
padre, o índio artesão que recusa o negócio de uma vida para não deixar de pôr
a sua alma e as suas canções em cada um dos cestos que produz, são elementos
que Traven respiga nas aldeias de camponeses índios para compor a sua manta de
retalhos sobre a natureza humana, tão propensa à maldade como a solidarizar-se
com o seu semelhante. Não há optimismo nem pessimismo nestas histórias, há o humano na sua essência paradoxal, ambivalente, contraditória. Mais que a verdade biográfica, o verdadeiro mistério
reside na autenticidade das palavras quando discorrem sobre circunstâncias
aparentemente oníricas. Há nisto uma verdade porventura impenetrável: o que nos
liga, enquanto contas do rosário humano, é mais o termos experimentado viver do
que o nome que se atribui a uma vida.
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