O que se esconde por detrás das palavras? Será que se
esconde alguma coisa? Presumimos um corpo, ideias, memórias, imagens, ilusões,
sentimentos, emoções, tudo isso presumimos por detrás das palavras, mas por
vezes elas parecem não revelar mais do que a sua ténue compostura. Muita da
poesia portuguesa contemporânea nasce de uma relação reverencial com as
palavras, parecendo não haver por detrás delas mais do que elas próprias. Poemas
sólidos como corpos sem sementes, onde tudo é rosto e superfície. Nenhum
sentido oculto senão os significados das palavras elas mesmas em articulação
umas com as outras, provocando na leitura a estranheza de uma vazio que uns dirão
elíptico, outros definirão sóbrio e por certo alguém simplesmente deixará prevalecer
sem necessidade de o questionar. Talvez Seja Essa Certeza (Medula, Dezembro de
2014), de António Amaral Tavares (n. 1964), reúne três conjuntos de poemas, aos
quais se segue um remate aparentemente isolado, onde o respeito pelo poder impressivo
da palavra resulta numa poesia despojada de artifícios imagéticos, sem estratagemas
rítmicos nem ardis metafóricos. São poemas descarnados, porém estranhamente
confortáveis, onde o tema da morte surge em relação com o tempo debaixo do
toldo melancólico da ruína. Partindo deste princípio, podemos afirmar que esta
poesia se inscreve numa ampla tendência da sua contemporaneidade. No primeiro
conjunto, a tal toada elíptica da maioria dos poemas contrasta com o fraseado
discursivo do poema Silêncio: «Danada esta tua morte sem coisa que a supusesse
/ a não ser um pequeno nó estúpido que preferias / não tão íntimo a crescer na
cabeça» (p. 24). Trata-se de um poema brutalmente revelador, cuja principal
força reside tanto na assessoria dos poemas antecedentes que para ele preparam
o caminho como na emotividade expressa sem cedências ao floreado sentimental
que o tema tantas vezes reclama. A morte, pois, o medo da morte, sem falsos
pudores, retomam no segundo conjunto uma reflexividade existencial que tem na
experiência da morte do outro o ponto de partida para uma interrogação sobre o
sentido da vida. Heidegger dizia que «não se deve confundir a angústia com a
morte com o temor de deixar de viver». A angústia é a consciência do fim para o
qual tende a existência. É neste sentido que a cidade surge amiúde enquanto
palco onde a ruína, vestígio da morte, mais se evidencia. A cidade acelera o tempo, nela as transformações são mais evidentes, o rosto das cidades envelhece com outra clarividência, a mesma que encontramos nas rugas do nosso próprio rosto. Mas algures entre a
latência e o rigor do discurso surge a figura do cão como a mais recorrente,
ora num registo estranho e invulgar — «um cão em lume lento» (p. 14), «os seus
cães de areia» (p. 20) —, ora num contexto afectivo mais ou menos auto-referencial
— «esse cão que corre sem / raça nem nome a abrigar-se do temporal» (p. 34),
«Acaricio assim por hábito / o pêlo a este cão que a meu lado se deita» (p. 44).
Mas também «os cães hão-de lamber o sangue / da ferida que acorda» (p. 39),
apesar de «que nunca chegará esse cão / para lamber os pés magoados nos seixos
da tarde / sabendo que só tu moras aí nessa // cidade onde morri clandestino»
(p. 49). Animal de companhia, o cão é também aqui figura de substituição. Preenche
o espaço deixado vazio pelo perecimento e consequente desaparecimento de quem e
do que foi apanhado nas teias da morte. É objecto de afectos e refúgio sentimental, tal como a poesia. Ausência, distância e silêncio não são propriamente
superados pela presença canina, a qual se revela lenitiva embora insuficiente. Podemos
então falar de uma patologia da morte que o poema final, isolado dos três
conjuntos essenciais, induz num colorido inesperada e agradavelmente irónico:
Doutor eu tenho uma guerra tremenda dentro da minha cabeça
um euro e trinta e cinco cêntimos 16 de Agosto de 2011
não dá para o tabaco. Quero lembrá-lo que o verão está a
acabar
e eu já ouço passos nos caminhos da lama e do medo
e há coisas que só no verão se fazem e eu ainda não fiz
como ouvir o rumorejar do mar nos meus pulsos.
Os seus medicamentos doutor deixam-me sem mim
o meu pai disse-me que a minha doença só lhe traz problemas
doutor há uma pedra intraduzível entre nós dois
quero dizer-lhe que há pessoas muito pobres que querem
o meu rim esquerdo doutor o mundo não é perfeito
e não me diga para lhe contar tudo como a um padre
eu não quero morrer outra vez essa frase fá-lo muito feio.
Acredite que vi gente morrer porque era maior que o corpo
tenho a impressão que o corpo não sabe o que tem dentro
acredite que consigo fundir uma lâmpada só com o olhar
já fundi muitas lâmpadas só com o olhar
e que vi um anjo atravessar os muros de um hospício
rasante e belo como uma garça.
Doutor há muito pouco tempo para a poesia.
Isto que lhe digo é verdade todos os dias doutor.
2 comentários:
Poder-se-ia pensar que não mas lemos de facto o mesmo livro, com a ressalva que eu apenas li muito mais do mesmo. A mesma amargura delico-doce, o mesmo tonos requentado, a mesma omnipresença de um sujeito poético que se quer tão domesticado na sua aparente inquietação quanto possível. Dioptrias minhas, sem dúvida.
Olha, olha: http://meianoitetododia.blogspot.pt/2015/12/premio-nacional-de-poesia-diogenes-2014.html . :-)
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