domingo, 1 de fevereiro de 2015

DÚVIDA NÃO METÓDICA


Estou hoje certinha como tabuada:
sem desmultiplicações nem nada de extra.
Somos dedos, janelas (um mais um, cinco
mais cinco): 10 janelas, 2 dedos
- e uma dúvida instala-se curtinha,
nervosos cotovelos à janela

Resisto-lhe ao cinismo, à ambiguidade
(quero-me hoje tão certa como tabuada).
E somo novamente, multiplico,
e divido uma vez, dez vezes, cem,
rasgo mentais papéis, mas já não sei
se os dedos são os dez que atrás somei,
se são os dois os múltiplos dos cinco

Em desespero clínico, subtraio
(e eu que me queria hoje como tabuada!),
volto a rever as contas, agigantam-se
zeros, noves fora por fora, prova dos
nove ou zero, ou oito, ou o que for,
mas que dê certo

Ouço-lhe já o riso despegado, os
cotovelos, cínicas janelas,
e em assombro demente verifico
que trouxe vinte irmãs ou quarente consigo,
ou talvez dezanove ou trinta e nove,
mas já não sei contar:

só sei da multidão emoldurada
e uma lua por trás. Plácida
e certa


Ana Luísa Amaral (n. 1956), in Coisas de Partir (2001). «Quando o tempo e a distância recompuserem os nexos cronológicos e temáticos que constituem o que é a geração de 1980 (a meu ver, os nascidos entre 1951 e 1960, ainda marcados pela centralidade do discurso literário na linguagem, e tendo nesse centro a poesia), a poesia personalíssima e dialogante de Ana Luísa Amaral ocupará lugar de destaque nesse período. De facto, integrada na geração onde se incluem Adília Lopes (n. 1960), Isabel de Sá (n. 1951), Amadeu Baptista (n. 1953) ou Jorge de Sousa Braga (n. 1957) - sem esquecer um muito esquecido Alexandre Vargas (n. 1953) -, distingue-se pelo tom serenamente trágico no diálogo com a memória. Acontecimentos, revisitações, recordações regressadas em tom de aparição concretizam-se numa espécie de anagnórise (reconhecimento) trágico mas assumidamente sereno, num encontro com uma parte de si mesma, simultaneamente revelação e compreensão. (...) Poesia que dialoga com gerações anteriores da poesia portugues (Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner), mas que se ancora na poesia anglo-saxónica pela sua contenção. E que, também, revisita lugares paralelos da lírica feminina portuguesa» (Pedro Sena-Lino, Público, 27 Maio 2006).

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