quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

A TESE DE MALAGUETA SOBRE O NÚMERO QUATRO



As mais frugais razões podem levar-me a comprar um livro. Neste caso, conjugaram-se o desconhecimento do autor, o culto da editora, as ilustrações de Henrique Manuel e a data de publicação (mês e ano em que nasci). José Martins Garcia (n. 1941 – m. 2002) nasceu na ilha do Pico fez ontem, 17 de Fevereiro, precisamente 74 anos. Biógrafo de Vitorino Nemésio (n. 1901 – m. 1978), foi professor universitário, cronista, contista e romancista. Lugar de Massacre (1975) está entre as primeiras e, diz quem leu, mais incisivas abordagens literárias à experiência da Guerra Colonial. Colaborador assíduo de Fernando Ribeiro de Mello, publicou nas Edições Afrodite, entre outros, o livro de contos Alecrim, Alecrim aos Molhos... (1974). Meia dúzia de contos de carácter heterodoxo onde sobressai um país conservador, arraigado ao catolicismo mais castrante, com suas personagens ao mesmo tempo caricatas e abjectas. Na narrativa que oferece o título à recolha nota-se a influência surrealista, através de uma sucessão de episódios delirantes onde os aspectos grotescos da sexualidade convivem com os ditames de uma moral beata. Possessões e exorcismos assomam as personagens, as quais implodem num desnorte de direcções debaixo de torrente satírica imparável. O Conto do Vigário é muito bom, sátira impagável sobre o antiespiritualismo de certos agentes do Senhor com fortuna feita na província. Mas o momento mais feliz é a Ascensão e Queda de Alfredo Malagueta, típico reaccionário em terra de paredes de vidro para quem os comunistas comem não apenas criancinhas mas tudo o que lhes vem ao dente. Num país ainda hoje de malaguetas, incrivelmente populares e credibilizadas pelo generoso tempo de antena, seria injusto deixar na penumbra tamanha personagem. De nota, estas contas sobre a poesia portuguesa:
   Também foi muito mal aceite pelos portalejos a tese de Malagueta sobre o número quatro. Foi o caso que, interpelado por um colega curioso sobre os maiores nomes da poesia nacional, Alfredo Malagueta confessou não ter dúvidas quanto ao preenchimento da trilogia cimeira. Camões, Quental, Pessoa. Mas depois?... O quarto lugar constituía um problema gravíssimo. Os historiadores da literatura não davam achegas para tão melindrosa avaliação. Nem os catedráticos sabiam quem era o quarto poeta, nem o Ministro da Educação Nacional ousava decidir em tão transcendente matéria. Quem seria?... Alfredo Malagueta já sofrera noites de insónia, em demanda do almejado nome. Sem êxito. Ora a voz da inspiração lhe segredava o nome de Bocage, ora o bom senso lhe lembrava que um libertino nunca poderia ocupar tais píncaros. Por vezes a voz misteriosa segredava-lhe o nome de Teixeira de Pascoaes, mas Pascoaes era pouco lido... Também ouvira algumas vezes o nome de José Régio... Mas Régio ainda vivia... De modo que esse preenchimento do quarto lugar era problema de quebrar a cabeça mais erudita. O próprio Fernando Pessoa lhe chegara a pôr algumas dúvidas em tempos, dada a utilização que fizera, impensadamente, do vocábulo merda. Todavia, dada a sua já relativamente distante morte, tudo levava a crer tratar-se de um pecadilho de juventude. O colega curioso, pouco adaptado à ciência portaleja, perguntou: «Mas por que quer escolher o senhor doutor quatro, e só quatro, poetas?» Alfredo Malagueta entusiasmou-se: «Colega, saiba que depois do quarto virá o quinto, tal como sucederá com os impérios...»
   Como tudo era rapidamente sabido na Porta - onde a moral vítrea açambarcava as atenções de modo a impedir conhecimentos esotéricos - a versão divulgada acerca dos poetas acentuou que Alfredo Malagueta descobrira que, a seguir ao número quatro, vem o número cinco, interpretação causadora de uns primeiros apupos na via pública.
   Um primeiro afastamento dos portalejos deixou-o muito solitário, rondando as águas indiferentes, meditando nas nuvens carregadas, aproximando-se perigosamente das serpentes e dos cães que guardavam os dois extremos da cidade. Estava a findar aquele primeiro e amargurado ano lectivo quando, interrogado por um aluno acerca do Canto IX de «Os Lusíadas», Malagueta perdeu o respeito pelo poeta número um da lista e pipilou que Camões tinha sido um tarado sexual. O reitor, homem franco ao modo antigo, resolveu intervir:
   - Homem! - disse - Camões, fosse lá o que fosse, sempre é o símbolo da pátria... Veja lá o que diz aos pequenos!
   Alfredo Malagueta recolheu-se a um orgulho taciturno, ferido, ensimesmado, incompreendido. Circulava de casa ao liceu, de casa ao templo.
José Martins Garcia, in Alecrim, Alecrim aos Molhos..., com ilustrações de Henrique Manuel, Edições Afrodite, Novembro de 1974, pp. 98-100.

3 comentários:

Anónimo disse...

Se conseguir deitar a mão a «(Quase) Teóricos e Malditos» (Salamandra, 1999), do mesmo autor, não hesite. Não o vai desiludir.

hmbf disse...

Obrigado.

Anónimo disse...

O "Revolucionários e Querubins" é muito bom também, apesar - ou talvez por causa - do azedume "birceano".