Por fim, desce o pano
sobre o dia que findou.
É tempo de ficar a sós
com os meus fantasmas.
Após ter sido sumido
Ulisses na metrópole,
regresso ao meu casulo
de crisálida envergonhada,
repleto de sonhos vagabundos
que aqui vão hibernando.
Estou pronto para abraçar
a saudade nesta pausa
dorida fora de horas.
Com pálpebras coladas
à pele, contemplo o incêndio
prestes a principiar.
Hesito. Marco passo.
Hesito novamente.
(Por que é que tem de ser
assim sempre tão difícil?)
Escrevo sobre o que me faz sofrer
(o que sinto e o que não sinto).
Escrevo sobre os despojos
do crepúsculo que virá.
É este o meu ritual de amar
absurdos e tardios devaneios.
Agrada-me ficar assim:
de mão estendida, rendido
às migalhas do vazio que
nunca soube decifrar.
Alheio a tudo,
vou desembrulhando
a noite em câmara lenta.
Tomo o meu tempo.
Não tenho pressa.
Com dedos inseguros
percorro os passos
nómadas da sonâmbula
cidade, enquanto o prédio
em frente encena indistintas
silhuetas, na esperança talvez
de apanhar a boleia do último semáforo.
Como sempre, o silêncio impuro
marca o compasso deste meu
crime perfeito sem fronteiras.
Não tenho plano estabelecido.
Limito-me a lamber as feridas
do meu olhar cansado, dizendo
que sim: a morte é uma flor.
Recomeço. Hesito novamente.
Sem bússola, mapa borda fora,
arrisco nomear coisas rente à terra.
Sonho com mares desnudados
e vislumbres de melancolia
em carne viva - a cor do desespero.
Fico atento às vozes esquecidas.
Expectante, com o dedo no gatilho,
reacendo os estilhaços das veias rasgadas,
pronto a atear rastilhos de sílabas obscuras.
As minhas noites são assim.
Passo-as em claro, na companhia
da minha solidão, hesitando escombros
de beleza, vigiando estrelas perdidas.
Mas eis que chega a hora de me deixar vencer
pelo sono e de assim sucumbir perante
incandescentes lágrimas sem história.
Amanhã estarei de volta ao rascunho
dos ínfimos gestos desprovidos de magia.
Despir-me-ei do assombro de estar vivo.
Vestirei a máscara do costume - disfarce
exemplar que, em vão, procuro enganar
o rasto do lume - a bênção inútil do amor.
No final de contas, bem vistas as coisas,
pode quase tudo a poesia: pedir perdão,
iluminar a errância de não sabermos
para onde partimos e reconhecer que
em breve nos iremos transformar em
fantasmas que serão ou não lembrados.
Em troca, apenas nos pede que
escutemos o rumor do coração:
o envelope vazio de nunca chegar.
E é já muito dizer assim adeus.
Ricardo Gil Soeiro (n. 1981), in Bartlebys Reunidos (2013). Autor
de várias obras consistentes nos domínios da poesia e do ensaio literário,
tendo-lhe sido atribuído o Prémio PEN Clube 2009 de Ensaio-Primeira Obra por
Iminência do Encontro: George Steiner e a Literatura Responsável, Ricardo Gil
Soeiro é, entre os da sua geração, aquele sobre o qual se pode afirmar com maior
propriedade praticar uma poética da intertextualidade, pejados que os seus
poemas estão de referências literárias mais ou menos flagrantes. Num diálogo
insistente e exaustivo com a herança literária, questiona a natureza da poesia
e o sentido do poema através de uma experiência obsessiva na arrumação dos
conjuntos que vem publicando desde 2010. Por vezes, os versos estremecem com o
que parecem ser confissões súbitas de cariz existencial e referências
intimistas. Mas a tendência mais visível é para a dúvida sobre a utilidade da
poesia e a função do poema, manifestando esta dúvida uma incerteza firme quanto
ao labor daquele que abraça a literatura quotidianamente.
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