domingo, 22 de fevereiro de 2015

EN EL ESTADO MÁS LIBRE DEL MUNDO

Pero siempre fue así: a quien está destinado a precipitarse en el vacío, se le tapan los ojos para que no sienta vértigo.
Ret Marut
Antes de ter sido Bert Traven, enigmático autor dos populares romances The Treasure of the Sierra Madre (1927) e The Death Ship: The Story of an American Sailor (1926), Otto Feige (n. 1882 – m. 1969) foi Ret Marut. A confusão persiste ainda hoje, valendo a tese que atribui ao polaco Otto Feige a verdadeira identidade por detrás dos pseudónimos Marut e Traven. O que podemos dar como certo é que o nome de Ret Marut aparece na conturbada vida pública da Alemanha do início do séc. XX como autor da revista Der Ziegelbrenner, publicada entre Setembro de 1917 e Dezembro de 1921 na cidade de Munique. Para quem não esteja familiarizado com o tema, convém esclarecer que à época publicações como Der Ziegelbrenner afastavam-se radicalmente do conceito que hoje temos de revista por não terem senão um único autor no lugar de vários jornalistas ou grupos de escritores. De resto, a imprensa convencional, a quem Marut chama “a puta pública”, é um dos alvos principais dos seus artigos dardejantes: «Tenéis un solo enemigo que es el más degenerado de todos. La tuberculosis y la sífilis son epidemias terribles que sufre el hombre. Mucho más terribles, malignos y perniciosos son los efectos de la epidemia más asoladora: la puta pública, la prensa» (in ¡Hombres!, 20 de Março de 1920). A razão de assim ser é facilmente compreensível se tivermos em conta dois factores que impediam a imprensa de se afirmar como veículo de informação em prol da verdade: por um lado, a censura; por outro, a subjugação do jornalismo aos poderes económico e político. Se o primeiro desses factores foi, em parte, erradicado da realidade europeia, exercendo-se hoje essa censura não de uma forma institucional mas a partir de condicionalismos que dificultam o trabalho dos jornalistas, o mesmo não podemos afirmar da subjugação, sobretudo, ao poder económico. Mais sentido faz a expressão utilizada por Ret Marut quando constatamos ser o jornalismo que hoje se pratica completamente dependente de agências de comunicação com interesses específicos, meticulosas fugas de informação ou, para citar Pacheco Pereira, “empresas,associações de interesse, agências de comunicação e marketing, por sua vezempregues por quem tem muito dinheiro para as pagar”. Ora, é de todos sabido quem tem esse dinheiro. O que chega ao público disfarçado de informação mais não é, pois, do que veneno com um único objectivo: manipular a opinião pública. Quase 100 anos nos distanciam dos textos coligidos neste En el estado más libre del mundo (Alikornio ediciones, Setembro de 2000), título irónico para a edição castelhana dos textos com que Ret Marut agitou a Baviera e arredores durante e algum tempo depois da I Grande Guerra. Descontando o tom datado de algumas intervenções, a verdade é que artigos como El temor a la vida (1 de Dezembro de 1917), La nueva libertad (3 de Dezembro de 1919) ou Siete rostros del tiempo (21 de Dezembro de 1921) mantêm uma inquietante actualidade. Tomemos de princípio o posicionamento político do autor: «Yo no pertenezco ni al partido socialdemócrata ni soy socialista independiente. Ni pertenezco al grupo “Spartakus” ni soy bolchevique. No pertenezco a ningún partido, a organización política de ninguna clase» (in Comienza la revolución mundial, p. 49). Esta reivindicação de independência não o impede, porém, de manifestar as suas simpatias. Podemos mesmo afirmar que lhe garante coerência às contradições do pensamento, mostrando-se adepto da ditadura do proletariado e do sistema dos conselhos ao mesmo tempo que reivindica o fim do Estado à maneira de um anarquismo individualista que tem nos escritos de Max Stirner a sua mais eloquente expressão. Andreas Löhrer resume assim o pensamento de Marut na introdução: «Vacilaría entre el “socialismo ético”, el libre pensamento de un artista, el afán de la subversión radical y la necesidad de una fuerte organización proletaria» (p. 10). Elementos que confluem invariavelmente para uma mesma ideia: a de que o capitalismo e sua intrínseca avareza são os maiores inimigos do indivíduo, promovendo a preguiça intelectual ao mesmo tempo que o hipnotizam com as ilusões de felicidade supostamente proporcionadas pelo dinheiro. Transformados em escravos do dinheiro, os colonizados do capitalismo temem perder o emprego, criam dentro de si fortes resistências à mudança, o medo ergue dentro desses indivíduos muralhas de ignorância propagadas pela imprensa manipuladora. Subjugados aos interesses "da comunidade" os indivíduos mais facilmente aderem às guerras entre os estados do que promovem as suas próprias batalhas. Esta realidade resulta em sociedades divididas, indivíduos esvaziados da sua individualidade, estados onde «no se quiere personas capaces en los departamentos porque la gente consciente de sus capacidades no sirven para subalternos» (in La censura. El hecho, 15 de Janeiro de 1919, p. 46). Curiosíssimo paradoxo, o individualismo de Ret Marut é filantrópico. Certo solipsismo que por vezes emerge nas suas palavras é o garante de uma humanidade mais solidária, sem estados egoístas e castradores dos seus povos. Mais ou menos utópico, Marut foca-se na liberdade e na felicidade individuais contra a “paz e ordem “ podres dos estados opressores: «”Paz y orden” significan: protectión del capitalista para que pueda explotar en “paz y orden” a los que quieren comer» (in Comienza la revolución mundial, 30 de Janeiro de 1919, p. 52). Contra os rebanhos eleitorais incultos e desinformados, contra os oportunistas e os traficantes de escravos, Marut propôs um socialismo que consistisse na «distribución justa de los bienes existentes y producidos según el valor del trabajo realizado y según la necesidad del beneficiario de los bienes. El Estado no tiene necessidades. El Estado es una institución inútil que consume más valores de los que puede producir» (in La nueva libertad, 3 de Dezembro de 1919, p. 76). É óbvio que “o estado mais libre do mundo” só poderia ver-se libre da liberdade deste indivíduo, perseguido pelo Estado por ser considerado seu inimigo. Ao contrário de outros, que pereceram ostracizados pelas beneméritas democracias ocidentais, ou foram simplesmente executados, assassinados, por defenderem tais heresias — ¡Sed indivíduos, sed hombres! —, Ret Marut conseguiu escapar à acusação de delito e alta traição. Fugiu para o México e, entre os índios oprimidos e explorados desse país, tornou-se Bert Traven. Ainda o lemos.

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