Pero siempre fue
así: a quien está destinado a precipitarse en el vacío, se le tapan los ojos
para que no sienta vértigo.
Ret Marut
Antes de
ter sido Bert Traven, enigmático autor dos populares romances The Treasure of
the Sierra Madre (1927) e The Death Ship: The Story of an American Sailor
(1926), Otto Feige (n. 1882 – m. 1969) foi Ret Marut. A confusão persiste
ainda hoje, valendo a tese que atribui ao polaco Otto Feige a verdadeira
identidade por detrás dos pseudónimos Marut e Traven. O que podemos dar como
certo é que o nome de Ret Marut aparece na conturbada vida pública da Alemanha
do início do séc. XX como autor da revista Der Ziegelbrenner, publicada entre
Setembro de 1917 e Dezembro de 1921 na cidade de Munique. Para quem não esteja
familiarizado com o tema, convém esclarecer que à época publicações como Der
Ziegelbrenner afastavam-se radicalmente do conceito que hoje temos de revista por
não terem senão um único autor no lugar de vários jornalistas ou grupos de
escritores. De resto, a imprensa convencional, a quem Marut chama “a puta
pública”, é um dos alvos principais dos seus artigos dardejantes: «Tenéis un
solo enemigo que es el más degenerado de todos. La tuberculosis y la sífilis
son epidemias terribles que sufre el hombre. Mucho más terribles, malignos y
perniciosos son los efectos de la epidemia más asoladora: la puta pública, la
prensa» (in ¡Hombres!, 20 de Março de 1920). A razão de assim ser é facilmente compreensível
se tivermos em conta dois factores que impediam a imprensa de se afirmar como
veículo de informação em prol da verdade: por um lado, a censura; por outro, a
subjugação do jornalismo aos poderes económico e político. Se o primeiro desses
factores foi, em parte, erradicado da realidade europeia, exercendo-se hoje
essa censura não de uma forma institucional mas a partir de condicionalismos
que dificultam o trabalho dos jornalistas, o mesmo não podemos afirmar da
subjugação, sobretudo, ao poder económico. Mais sentido faz a expressão
utilizada por Ret Marut quando constatamos ser o jornalismo que hoje se pratica
completamente dependente de agências de comunicação com interesses específicos,
meticulosas fugas de informação ou, para citar Pacheco Pereira, “empresas,associações de interesse, agências de comunicação e marketing, por sua vezempregues por quem tem muito dinheiro para as pagar”. Ora, é de todos sabido quem tem esse dinheiro. O que chega ao público disfarçado
de informação mais não é, pois, do que veneno com um único objectivo: manipular a
opinião pública. Quase 100 anos nos distanciam dos textos coligidos neste En el
estado más libre del mundo (Alikornio ediciones, Setembro de 2000), título
irónico para a edição castelhana dos textos com que Ret Marut agitou a Baviera
e arredores durante e algum tempo depois da I Grande Guerra. Descontando o tom
datado de algumas intervenções, a verdade é que artigos como El temor a la vida
(1 de Dezembro de 1917), La nueva libertad (3 de Dezembro de 1919) ou Siete
rostros del tiempo (21 de Dezembro de 1921) mantêm uma inquietante actualidade.
Tomemos de princípio o
posicionamento político do autor: «Yo no pertenezco ni al partido
socialdemócrata ni soy socialista independiente. Ni pertenezco al grupo “Spartakus”
ni soy bolchevique. No pertenezco a ningún partido, a organización política de
ninguna clase» (in Comienza la revolución mundial, p. 49). Esta reivindicação
de independência não o impede, porém, de manifestar as suas simpatias. Podemos
mesmo afirmar que lhe garante coerência às contradições do pensamento,
mostrando-se adepto da ditadura do proletariado e do sistema dos conselhos ao
mesmo tempo que reivindica o fim do Estado à maneira de um anarquismo
individualista que tem nos escritos de Max Stirner a sua mais eloquente expressão.
Andreas Löhrer resume assim o
pensamento de Marut na introdução: «Vacilaría entre el “socialismo ético”, el
libre pensamento de un artista, el afán de la subversión radical y la necesidad
de una fuerte organización proletaria» (p. 10). Elementos que confluem invariavelmente
para uma mesma ideia: a de que o capitalismo e sua intrínseca avareza são os
maiores inimigos do indivíduo, promovendo a preguiça intelectual ao mesmo tempo
que o hipnotizam com as ilusões de felicidade supostamente proporcionadas pelo
dinheiro. Transformados em escravos do dinheiro, os colonizados do capitalismo
temem perder o emprego, criam dentro de si fortes resistências à mudança, o
medo ergue dentro desses indivíduos muralhas de ignorância propagadas pela
imprensa manipuladora. Subjugados aos interesses "da comunidade" os indivíduos mais
facilmente aderem às guerras entre os estados do que promovem as suas próprias batalhas.
Esta realidade resulta em sociedades divididas, indivíduos esvaziados da sua individualidade,
estados onde «no se quiere personas capaces en los departamentos porque la
gente consciente de sus capacidades no sirven para subalternos» (in La censura.
El hecho, 15 de Janeiro de 1919, p. 46). Curiosíssimo paradoxo, o
individualismo de Ret Marut é filantrópico. Certo solipsismo que por vezes
emerge nas suas palavras é o garante de uma humanidade mais solidária, sem
estados egoístas e castradores dos seus povos. Mais ou menos utópico, Marut
foca-se na liberdade e na felicidade individuais contra a “paz e ordem “ podres
dos estados opressores: «”Paz y orden” significan: protectión del capitalista
para que pueda explotar en “paz y orden” a los que quieren comer» (in Comienza
la revolución mundial, 30 de Janeiro de 1919, p. 52). Contra os rebanhos eleitorais
incultos e desinformados, contra os oportunistas e os traficantes de escravos,
Marut propôs um socialismo que consistisse na «distribución justa de los bienes
existentes y producidos según el valor del trabajo realizado y según la
necesidad del beneficiario de los bienes. El Estado no tiene necessidades. El Estado es una institución inútil que
consume más valores de los que puede producir» (in La nueva libertad, 3 de
Dezembro de 1919, p. 76). É óbvio que “o estado mais libre do mundo” só
poderia ver-se libre da liberdade deste indivíduo, perseguido pelo Estado por
ser considerado seu inimigo. Ao contrário de outros, que pereceram ostracizados
pelas beneméritas democracias ocidentais, ou foram simplesmente executados,
assassinados, por defenderem tais heresias — ¡Sed indivíduos, sed hombres! —,
Ret Marut conseguiu escapar à acusação de delito e alta traição. Fugiu para o
México e, entre os índios oprimidos e explorados desse país, tornou-se Bert Traven.
Ainda o lemos.
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