Não percebo nada do que anda a discutir-se no mundo. Olho
para a televisão enquanto aguardo à mesa d’O Borges, em Seia, o joelho de
porco. Vejo os carros de combate a disparar algures na fronteira entre a Ucrânia
e a Rússia, uma mulher idosa chora debaixo da neve e diz: «sobrevivi à guerra e
agora isto outra vez». Isto são os disparos, o desfile das tropas, cortejo de Carnaval
com fogo-de-artifício, implosões de medo no coração dos povos. Eis-nos: a morte
enquanto a neve cai na Ucrânia e o Quinta dos Termos escorrega em Seia. Como
podemos viver assim? Não seria melhor desligar o mundo como quem desliga um
plasma?
Incursões na natureza selvagem falharão se em vez de
luvas trouxeres o tablet, se em vez de cachecóis trouxeres o smartphone, se em
vez de botas de neve trouxeres o desktop. Breves minutos que sejam destas rajadas
de vento na pele seca têm, pelo menos, o poder de te afastar um pouco mais das
discussões do mundo. Podes esquecer por instantes os problemas da Grécia, as
loucuras do Estado Islâmico, os atentados em Paris, Copenhaga e nessas terras longínquas
e inacessíveis da Nigéria. É já ali, dizem-me. Mas já ali fica a serra
fustigada pelo vento, os pedregulhos de Ride Lonesome cobertos de gelo, o
sorriso de famílias inteiras em dia de feriado não consentido.
Estive aqui quando era criança, ainda o mundo existia envolto
em muros e com os portões todos cerrados. Imaginava-me Ben Brigade montado no
seu cavalo, os corpos enregelados dos bandidos em Day of the Outlaw. Fazia os
meus próprios filmes, nomeava as pedras para fixar os lugares, coleccionava os
nomes das ervas selvagens que entretanto esqueci, sabia distinguir uma cabra de
um carneiro pelo balido, dava menos erros ortográficos. Ficava a olhar para as
torres de vigia como se carecessem de vigilância, fascinavam-me as alturas e os
declives, sabia que a Grécia existia mas talvez não soubesse localizá-la no
mapa. O canto dos pássaros extasiava-me como supomos terem as sereias extasiado
os marinheiros, por isso lhes fiquei com medo, por isso troquei com eles o
lugar na gaiola. É já ali a vida a perder-se.
Parece que foi ontem, mas não foi. E talvez restem menos
dias pela frente do que os que ficaram para trás. Não pretendo congelar o corpo
nem suas memórias, experiências todos temos as que a vida nos empresta e a
vontade força. A minha intenção é outra, bem mais humilde. Apagar as luzes por
momentos, desligar o interruptor sabendo que tal gesto não interrompe o curso
das horas. À nossa volta o mundo prossegue seus debates e discussões, problemas
que não entendermos por sempre nos parecer tão simples a solução para quem
tenha dos factos a consciência da morte. Nesta brevidade enclausurados talvez
saibamos aproveitar melhor cada segundo se resistirmos a desperdiçá-los com promoções
tentadoras. Nestas paragens a neve não cai como na Ucrânia. Que por lá sirva de
consolo à velha a maciez do floco. Por aqui, deitam-se bonecos de neve sobre a
textura do gelo.
1 comentário:
És um verdadeiro cyriza. Gramo as tuas observações.
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