quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

TEXTURA DO GELO

Não percebo nada do que anda a discutir-se no mundo. Olho para a televisão enquanto aguardo à mesa d’O Borges, em Seia, o joelho de porco. Vejo os carros de combate a disparar algures na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia, uma mulher idosa chora debaixo da neve e diz: «sobrevivi à guerra e agora isto outra vez». Isto são os disparos, o desfile das tropas, cortejo de Carnaval com fogo-de-artifício, implosões de medo no coração dos povos. Eis-nos: a morte enquanto a neve cai na Ucrânia e o Quinta dos Termos escorrega em Seia. Como podemos viver assim? Não seria melhor desligar o mundo como quem desliga um plasma?
 

Incursões na natureza selvagem falharão se em vez de luvas trouxeres o tablet, se em vez de cachecóis trouxeres o smartphone, se em vez de botas de neve trouxeres o desktop. Breves minutos que sejam destas rajadas de vento na pele seca têm, pelo menos, o poder de te afastar um pouco mais das discussões do mundo. Podes esquecer por instantes os problemas da Grécia, as loucuras do Estado Islâmico, os atentados em Paris, Copenhaga e nessas terras longínquas e inacessíveis da Nigéria. É já ali, dizem-me. Mas já ali fica a serra fustigada pelo vento, os pedregulhos de Ride Lonesome cobertos de gelo, o sorriso de famílias inteiras em dia de feriado não consentido.
 

Estive aqui quando era criança, ainda o mundo existia envolto em muros e com os portões todos cerrados. Imaginava-me Ben Brigade montado no seu cavalo, os corpos enregelados dos bandidos em Day of the Outlaw. Fazia os meus próprios filmes, nomeava as pedras para fixar os lugares, coleccionava os nomes das ervas selvagens que entretanto esqueci, sabia distinguir uma cabra de um carneiro pelo balido, dava menos erros ortográficos. Ficava a olhar para as torres de vigia como se carecessem de vigilância, fascinavam-me as alturas e os declives, sabia que a Grécia existia mas talvez não soubesse localizá-la no mapa. O canto dos pássaros extasiava-me como supomos terem as sereias extasiado os marinheiros, por isso lhes fiquei com medo, por isso troquei com eles o lugar na gaiola. É já ali a vida a perder-se.

 

Parece que foi ontem, mas não foi. E talvez restem menos dias pela frente do que os que ficaram para trás. Não pretendo congelar o corpo nem suas memórias, experiências todos temos as que a vida nos empresta e a vontade força. A minha intenção é outra, bem mais humilde. Apagar as luzes por momentos, desligar o interruptor sabendo que tal gesto não interrompe o curso das horas. À nossa volta o mundo prossegue seus debates e discussões, problemas que não entendermos por sempre nos parecer tão simples a solução para quem tenha dos factos a consciência da morte. Nesta brevidade enclausurados talvez saibamos aproveitar melhor cada segundo se resistirmos a desperdiçá-los com promoções tentadoras. Nestas paragens a neve não cai como na Ucrânia. Que por lá sirva de consolo à velha a maciez do floco. Por aqui, deitam-se bonecos de neve sobre a textura do gelo.

1 comentário:

Anónimo disse...

És um verdadeiro cyriza. Gramo as tuas observações.